Editorias, Opinião

Os deuses ficaram loucos

Algures no alto mar, uma mãe perdeu-se do seu filho. Pouco depois ele veio dar à costa, sozinho. Encalhado na areia, banhado por uma ponta de mar, o pequeno parecia inerte. O vulto do corpinho despertou a atenção, e depressa se formou uma multidão no local. Uns olharam, outros tocaram, outros tomaram o bebé nos braços. Mas nenhum ajudou o pequeno a segurar o delgado fio de vida que talvez lhe restasse. Aquela mãe tornara-se então uma mãe sem filho.

Esta podia ser a história de um naufrágio. Esta podia ser a história de uma mãe vítima da crise síria. Esta podia ser a história de uma mãe qualquer. No entanto, esta é a história de uma mãe golfinho. E esta pequena diferença que é pertencer a outra espécie que não a humana é afinal bem grande. Grande o suficiente para que a morte perca o seu peso. Grande o suficiente para justificar e legitimar as mais desumanas atitudes do animal a que se atribui a designação de ser humano.

Aparentemente, quando se trata de outras espécies de seres vivos, filmar e fotografar são as ações no topo da hierarquia de prioridades do Homem. Tentar salvar vidas deixa de ser o mais importante. Porque tentar salvar vidas pode não garantir tantos likes numa página pessoal de Facebook.

No mundo de hoje, mais vale jogar pelo seguro e assegurar uma existência prodigiosa no mundo virtual. Fazer o bem só importa se houver uma multidão online a assistir.

Deve ter sido por essa razão que os banhistas, naquele dia de fevereiro, na praia de Santa Teresinha, optaram primeiro por um vídeo amador ao invés de um pedido de assistência para a cria inanimada. Porque ser um herói no mundo real já não basta. A fama de 15 segundos fornecida pelas redes sociais é muito mais necessária.

Claro que na falta de um ato heroico para publicar, não havendo vivo para salvar ou sabedoria para o fazer, nada mais indicado do que uma selfie de contornos épicos para sobressair no Instagram. Não importa como, não importa em que circunstâncias; só importa conseguir a melhor fotografia. E se para tal se tiver de passar de mão em mão um animal inanimado, que seja. Uma boa selfie vale tudo – até a hipoteca da moral humana.

Contra o poder irrevogável da tecnologia, o desrespeito perante a morte torna-se afinal um mal menor. A vida de outro ser vivo vale muito pouco. A morte não vale nada.

A Joana Costa escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico