Editorias, Opinião

Rotina

Abro os olhos. A cama está fria, o Rui já foi certamente para o trabalho. Ele madruga sempre, quer ser o primeiro a chegar ao escritório. Levanto-me com dificuldade, até respirar custa. Arrasto-me até à casa de banho e ponho a água a correr. Ainda tenho 25 minutos até os miúdos acordarem. Forço-me a olhar para o espelho mas não me reconheço. É a mesma cara, o mesmo nariz, os mesmos lábios e quase os mesmos olhos, mas não sou eu. Não posso ser…

A água escaldante acalma-me a mente e esquematizo a rotina: miúdos, trabalho, supermercado, jantar. Tenho de ligar à minha mãe, para não se esquecer de ir buscar os miúdos à escola… Um ardor interrompe os meus pensamentos, parece que o corpo não se habitua tão facilmente como a mente.

Enquanto me seco com a toalha olho-me novamente ao espelho. Os dedos percorrem a já habitual rotina. Cerro os dentes para não gemer de dor; não quero acordá-los, devem estar a dormir tão bem. Não aparento ter nenhuma costela partida, e a cor também não me parece nada mal, um vermelho vivo nas novas e um preto esverdeado nas mais antigas. Faz-me lembrar a morte, não sei porquê, ou se calhar até sei mas não o quero pensar… O alívio sabe a metal, a sangue, como se o meu corpo rejeitasse a sensação, como se também ele me rejeitasse. Coloco prontamente o vestido, não quero olhar mais tempo do que o necessário.

Os brincos esmeralda condizem com o vestido, e poder-se-ia dizer que me acentuava os olhos, quando eu tinha olhos dignos de uma princesa, como trauteava o meu pai no antigamente. Agora apenas me parecem turvos. Foram prenda dele da outra vez, ou será que foi quando não conseguiu a promoção? Agora olho para eles e só o vejo em cima de mim a sussurrar-me ao ouvido, dizendo que me ama e que eu sou a melhor mulher do mundo, e eu acredito, tenho que acreditar.
Abro os olhos. Varro o olhar pela plateia e também eles perceberam o passeio pelo passado. Aclaro a garganta e reúno a coragem necessária para começar.

– Pensei em vir aqui e contar a minha vida, aquilo por que passei, dar-vos pormenores simples da minha rotina e sei que vocês se iriam rever. Mas não o farei, pois não estou aqui só em nome de quem sofreu como eu sofri. Escolhi estar aqui presente para tentar demonstrar o que aprendi com esta experiência, o que vai muito além de qualquer rótulo (vítima de violência doméstica).

A verdade é que não era feliz. E li tudo o que havia para ler. Segredos, guias espirituais, é só dizerem. Todos me pareceram dar a mesma mensagem: não entres na rotina, tenta ser espontânea. E não me entendam mal, não é efetivamente mentira, fugir da rotina e a espontaneidade são imprescindíveis, mas há muito mais, e foi essa compreensão que me fez começar este livro que se tornou tão mais graças a vocês…

As pessoas às vezes perguntam-me como é que eu aguentava, como é que eu o perdoava uma e outra vez, sabendo que ele iria repetir a dose. Eu não tinha resposta para lhes dar, eu fazia-o porque sim, porque o amava, porque era essa a minha vida. Eu própria também não compreendia, também nunca julguei ser possível isto acontecer, sempre olhei para a casa do outro e disse para mim que eu nunca iria ser capaz de estar com alguém que não me respeitasse ou me controlasse, quanto mais bater-me. Ai do homem que me tocasse, nunca mais me punha a vista em cima.

Mas bateu… E eu fui, ou pelo menos pensei em ir, mas os meus filhos eram pequenos e ele estava tão arrependido. E a segunda vez aconteceu. E a terceira, e a partir da quarta deixou de o ser e passou a rotina.

E foi aí que percebi, o ser humano é uma criatura de hábitos, é capaz de se adaptar a qualquer ambiente e a qualquer circunstância. E então olhei para a galinha das minhas vizinhas. Quem disse que nunca iria trair e traiu. Quem nunca iria perdoar a traição e perdoou. A vida é um ciclo e tudo o que deixa de ser um fenómeno e se transforma em rotina passa a ser aceitável. É essa a barreira que temos de saber percecionar e ativar, é isso que pretendo com este livro.

A nossa felicidade não passa por atos loucos, heróicos e românticos como vemos nos filmes, passa por arranjarmos o que nos faz sentir bem e torná-lo um hábito. Pequenas ações. Começa por questionar todo o nosso dia-a-dia e perceber o que pode ser feito de diferente.

Façam exercício! Amanhã vai custar, no dia seguinte também, mas mal passe a rotina o estranho é não fazer, o ciclo apodera-se da ação e a ausência acaba por ter mais impacto do que o próprio ato. É mais uma das pequenas singularidades da vida, quando a inércia tem efetivamente mais impacto que a ação.

Termino com uma mensagem de esperança, eu fui capaz de construir a minha felicidade, tijolo a tijolo, e acredito com todas as minhas forças que qualquer um de vós tem a mesma capacidade. Não vos incito a irem dar uma volta de 180 graus à vossa vida, peço-vos exatamente o oposto, tentem mudar muito pouco, apenas o suficiente, pois a vida tratará de ”rotinar” o resto.

Muito obrigada,
Uma mulher feliz.

“ O João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico”