A construção do espetáculo representado em espetáculo
Linhas, máscaras e corpos: foram três os elementos a construir «Intermitências», uma peça integrada em Cumplicidades – Festival Internacional de Dança Contemporânea de Lisboa -, que se realizou no Teatro da Trindade nos dias 12 e 13 de março.
Da autoria do coreógrafo brasileiro Joclécio Azevedo, «Intermitências» é um espetáculo que se baseia no modo como é feito o próprio espetáculo; para isso, utilizam-se os corpos dos cinco intérpretes – André Mendes, Bruno Senune, Camila Neves, Joan Castro e Joclécio Azevedo.
A Sala Eça de Queiroz veste-se de negro; o palco está descoberto, sendo possível ver um emaranhado de linhas e uma ventoinha, que faz chegar o seu som através dos dois microfones situados em frente. Todos se questionam acerca da utilidade daquele objeto.
Surgem cinco pessoas que seguram um novelo de linha e se deslocam pelo palco, a diferentes ritmos, para diferentes locais, desenrolando-o. O novelo parece não ter fim, tal como acontece no momento em que é necessário ter ideias para um espetáculo.
Juntos, conseguem terminar esta tarefa e, quando isto acontece, seguram o emaranhado em cima das cabeças e suportam aquele peso, pois a ideia pressupõe trabalho e perseverança.
De seguida, é necessário fazer com que a opinião de cada um prevaleça e assuma o espetáculo que será materializado. É neste momento que André, Bruno, Camila, Joan e Joclécio se distanciam uns dos outros; saltam, movem os braços, abanam a cabeça e gesticulam.
Todos são diferentes, física e psicologicamente. Cada um tem inscrito, em si, um passado que é, necessariamente, diferente entre os cinco. Todos passaram por diferentes experiências, que moldaram as suas opiniões, crenças e ambições para o futuro.
Cada um deixa a sua personalidade bem saliente em palco. Experimentando movimentos, testando limites e levando ao extremo o processo de criação, os intérpretes trocam forças, entrelaçam os seus corpos e tentam chegar a um consenso quanto ao que é aceite e rejeitado para o espetáculo final.
Não existe voz, não existe diálogo; existe apenas o som do cansaço de cada um. O objetivo é fazerem-se ouvir, fazerem com que a sua ideia seja a melhor e a escolhida.
Colocam-se em roda, abraçam as costas uns dos outros e o peso vai mudando de posição – ora para um corpo, ora para outro. É uma luta incomensurável, até chegar o momento em que o movimento termina. Os corpos param apenas. Isto transmite, ao público, a ideia de que o consenso foi conseguido.
Os cinco abandonam o palco, dando a ilusão de que a peça termina. Porém, voltam e vestem a pele de uma outra personagem. Deixam de ser os seres individuais que eram no início.
O processo criativo chega ao fim e cria-se uma nova peça. Desta conhecemos apenas cinco personagens, mascaradas. Não conhecemos ainda a sua história e não a conheceremos neste palco, nesta sala, neste Teatro. Ou talvez conheçamos. A única certeza que podemos ter é que ela existe; foi criada por pessoas, com diferentes histórias, com personalidades distintas, num processo criativo de luta, movimento e consenso.