Grande Entrevista, Grande Reportagem

A Morte e a Praça


Ricardo Silva era conhecido como “Pitó”. Forcado desde 1992, saltou a trincheira e caminhou solenemente até ao centro da praça de toiros da Arruda dos Vinhos. No olhar molhado por tons de castanho, transportava a confiança que o Cabo Vasco Dotti tinha depositado nele. Com o rosto beijado pela bruma de Vila Franca de Xira, a terra onde nasceu e da qual orgulhosamente levava as cores ao peito, ergueu-se para ouvir o sopro doce do cornetim. Quando a luva branca de José Henriques tocou a última nota, o vento levou todos os aplausos e espasmos para fora dali. O abanar elétrico dos leques pretos das mulheres que se curvavam perante aquele horizonte amarelo torrado sentia-se no coração dos aficionados. Pitó fitou serenamente o toiro que, do outro lado da arena, passeava baralhado, de costas para ele, com o pescoço e o cupim manchado de sangue e restos das bandarilhas. Colocou o barrete verde e vermelho e embateu ruidosamente o pé direito coberto por um sapato de prateleira ornamentado com atacadores amarelos contra a terra. Nesse momento, a besta negra de setecentos quilos fletiu as coxas e desvendou o olhar que palpitou a atmosfera. “Toiro! Toiro! Ah! Ohoo!”, Pitó fitou o perigo de peito inchado e o toiro içou os cornos como resposta. O forcado avançou e o toiro bravo abanou ferozmente o focinho. Pitó deu mais um passo e levou os braços morenos à cintura, posicionando o peito e a barriga à frente da cara. “Toiro! Toiro!”, a voz de Pitó atingiu subitamente tons graves adocicados com notas anasaladas. As patas encolheram-se por um instante e, num pestanejar, o animal tornou-se pena e investiu a galope em direção ao grupo de forcados, posicionados em linha reta. A terra calcada pelas patas do toiro pintava com pó as suas hastes em meia lua que, naquele momento, estavam arriadas. Com o cabelo escuro e ondulado aos saltos pela testa, Pitó afastou-se tacitamente, sem nunca virar a cara ao toiro, abrindo caminho aos olhos bêbados de sangue do animal. Os lábios rosados trancaram-se e os maxilares contraíram-se. Aquele momento era dele, para sempre. Encolheu a barriga e abraçou o ataque embebido do toiro. Com o abdominal posicionado entre o crânio e os chifres e com os braços agarrados ao pescoço do toiro, foi conduzido violentamente até à trincheira de madeira. Sem soltar a pega, sentiu a pele a rasgar-se e as costelas e os músculos do peitoral espremidos pelo focinho do animal. A camisa branca era agora uma paisagem de terra e sangue. Os companheiros saltaram para cima dele e o ímpeto bestial humano pôs um fim à investida do animal. Consumada a pega, os aplausos banharam a arena. Pitó, fechado como uma pedra na cabeça do toiro, foi liberto do abraço feroz pelos outros forcados. De olhos brandos, suspirou “Estou-me a sentir mal” e adormeceu embalado pela corrente de louvor e agonia. Não voltou a acordar.

Antes de qualquer corrida, René detém os olhos no retrato de Pitó erguido na sala de sua casa. Benze-se e reza por ele, para que encontre a vontade que o amigo tinha para pegar toiros. Lembra-se da primeira vez que se fardou com o grupo de forcados de Vila Franca de Xira: ‘o Pitó decidiu não se fardar para esse espectáculo porque tinha acabado de se casar e o Cabo disse-lhe: se não te vais fardar então desiste da temporada porque a corrida vai ser televisada e tens de assumir o teu compromisso para a temporada’. Nessa tarde, o grupo juntou-se na tertúlia de Vila Franca, um casebre de dois andares decorado com fotografias e quadros naturalistas que embelezam o passado daquele grupo de forcados fundado em 1932 pela mão do Cabo Joaquim Franco e que contava sempre com a presença de Maria, uma menina morena, filha do forcado fundador Vasco Rocha, que os acompanhava em todas as corridas. Nessa tarde ondulada por homens à pesca da enguia, Pitó dirigiu-se a René e deu-lhe as suas calças, um gesto que mostrava que tinha desistido daquela corrida. “Ter vestido a farda pela qual ele deu a vida é duro. Ele morreu a 16 de Agosto de 2002, um ano depois de ter vestido a farda portuguesa pela primeira vez.”, suspira René enquanto esconde as lágrimas de saudade atrás de óculos de sol escuros, o vento balança o timbre dourado da Amália projetado através de umas colunas distantes. René continua: “É isto que torna a festa tão grande e faz com que pessoas comuns sejam lendas”. A memória de Pitó é preservada no segundo andar daquela tertúlia. Ao lado de uma cabeça de toiro embalsamada está uma estátua pálida de nossa senhora com o retrato da face do forcado caído ao lado. Por baixo está um poema escrito pela menina Maria conhecida “madrinha” do grupo que faleceu em 2013. Em tom de verso lê-se:

“RECORDANDO O PITÓ”

Oh que dia de toiros, Santo Deus !…

O toque do clarim que é alegria,

Soou, talvez como a dizer adeus,

Àquele jovem tão cheio de valentia.

Citou o perigo co´a figura serena,

Onde a arrogância é donairosa e bela…`

E nesse abraço houve sorte suprema

A receber… sorte de morte aquela!…

Não o venceu o toiro na arrancada,

Que a pega até ao fim foi consumada

Com galhardia, raça e porte altivo…

Frente a esse povo tão emocionado,

Embora um coração tenha parado,

Ficou ali pintado um quadro vivo!

Eucaliptos, louros e álamos incendeiam de verde e ruby a água transparente do Golfo da Califórnia que banha Mazatlán, a segunda maior cidade do estado de Sinaloa, no México. O entardecer na Zona Dorada cria um retrato de uma população brindada pelo título de capital mundial do camarão. Um olhar viajante denota semelhanças com Miami, especialmente nos hotéis e marinas na zona portuária, porém o sol parece mover-se nesta cidade ao som de uma guitarra espanhola numa noite em Andaluzia. René Tirado conhece bem esse sol. Lembra-se de com 8 anos ver a bola de fogo mexicana a encadear a silhueta dos toiros na Plaza Mexico, a maior praça de toiros do mundo. Com espanto nos lábios e uma harmonia que conforta o tímpano como se tornasse oxigénio, René comenta com um olhar de vislumbre “a praça é imensa, espetacular”. Levado pela mão do irmão mais velho e do avô que vivia a poucos quilómetros daquela arena em forma de tampa de panela de pressão, sentava-se e admirava a potência animalesca do toiro. “O toiro é a vida representada em diferentes situações, ‘un gran maestro, un gran colega, pero también una gran autoridad.’ Golpeia-te, mas também dá-te grandes satisfações”. Tinha constantemente muitas perguntas sobre as corridas de toiros e o avô robusto e de pele mulata sorria enquanto o ensinava a procurar as respostas nos cornos do bicho. “Ia à praça de toiros e via os toureiros e os forcados como heróis. Via aquele mundo de gente render respeito e render aplausos a heróis, assim via os toureiros, como heróis”.

Com 12 anos, René começou a seguir o irmão mais velho que fazia parte de um grupo de forcados amadores locais. “Apaixonei-me ao vê-lo e ao ver tudo o que há por detrás dos forcados. Não só com os toiros, mas toda a mística de amizade. Era um ‘niño’ e desde aí soube que queria ser forcado”. Tinha 13 anos quando o Cabo o chamou ao balneário e lhe deu para a mão uma jaqueta de ramagens, uma cinta vermelha, uma camisa branca imaculada e atilhos vermelhos para colocar nos punhos, uma pequena gravata vermelha, um barrete verde cor da folhagem, uma gola vermelha garrida, um calção justinho bege como o trigo, uns botões prateados, meias brancas de campino, sapatos de prateleira com atacadores amarelos e suspensórios castanhos.

René saltou pela primeira vez a trincheira vermelha da praça de toiros de Mazatlán e sentiu o ondular do silêncio do público. Quando o forcado da cara estalou a terra com o sapato e citou o toiro cujo “rojeneador” já tinha sugado a energia e fúria sentiu uma alegria imensa dentro do peito. De mãos à cintura e quase colado com os outros sete forcados em linha reta, correu para o focinho do toiro, já coberto por outros cinco forcados, e usou o seu metro de altura para empurrar as omoplatas dos companheiros e esgotar a besta que depois de consumada a pega foi trespassada mortalmente pela muleta do “matador”. “A adrenalina, como muitos tratam chama-se medo e nós forcados temos muito medo. O medo faz a emoção. O que te faz transformar esse medo são todos os valores e toda a mística que existe para que tu vistas um traje. Hoje em dia e com tudo aquilo que vivi se me disseres tu punhas um traje sem tudo aquilo que há por trás, eu não o faria. Eu faço-o pela mística que corre dentro de mim. É isso que te faz mexer e superar esse medo. É mais forte do que o medo, torna-o opaco”, vocifera René enquanto entrelaça os dedos repolhudos na barba silvestre.

Pedro Louceiro foi um cavaleiro português que criou uma escola de equitação e de “rejoneo” no Cortejo de Santa Cruz de Cuajimalpa, no México. Era nessa escola que muitos miúdos treinavam para um dia encherem a Plaza Mexico. Mas o filho, Pedro Louceiro II, nunca viu um futuro a espetar bandarilhas em cima de um cavalo, preferindo enfrentar o toiro com o próprio corpo. Assim, para concretizar o sonho do primogénito, Louceiro a 15 de janeiro de 1978, em Tenango del Valle, juntou um grupo de durões astecas para realizar a primeira pega de um grupo de forcados mexicanos.

Vistos um pouco como loucos, o grupo de forcados liderados por Louceiro II viajou centenas de quilómetros, enfrentando toiros pelas maiores praças do país, enquanto tentava instaurar a 8712 quilómetros de Portugal, a tradição lusitana que começou no reinado de D. Maria II com o decreto que proibiu a morte dos toiros na arena, passando nesse momento a pegar-se o toiro. Os moços de forcado, até à altura os rapazes que com bastões com a ponta em forquilha que impediam o acesso ao camarote do Rei, passaram a encabeçar a missão de agarrar o toiro pelo focinho.

Uma das paragens do grupo de Louceiro II foi em Mazatlán. René estava sentado com os amigos do  liceu na arena a observar os oito homens a entrar em linha reta, com o Cabo posicionado à direita do grupo. Quando o forcado da cara caminhou para a frente do grupo e começou a citar o toiro, os colegas de René viram um brilho especial nos seus olhos. Disse-lhes René:  “vamos juntar-nos e ser um grupo de forcados”.

Noites depois, numa discoteca, encontraram Arturo Castro, um popular escultor de Mazatlán. Arturo conhecia bem a fisionomia de um toiro, desenhava com eficácia na pedra tanto os cornos como o patinho do animal. Nas horas vagas viajava até Celaya para esculpir também no peito as investidas do toiro. “Morir en los cuernos de un Toro Bravo o en los Brazos de mi Mujer Amada sería un placer”, dizia aos amigos forcados antes de caminhar para a arena. René e os companheiros pediram a Arturo ajuda para fundarem um grupo de forcados e, dessa conversa pautada pelo ritmo “ranchero” propagado pelas colunas da discoteca, nasceu o grupo de forcados de Mazatlán.

“É uma cultura Portuguesa que nós no México temos orgulho de defender. Toda a amizade, toda a lealdade… temos de defender estes valores especialmente nestes tempos que correm que estão a deixar esses ideais obsoletos”, declara René ao rodopiar a base do copo de vinho. Ao lado da garagem onde o forcado recorda todas estas histórias ouvem-se conversas, decoradas pelo cheiro das patuscadas, sobre cada legislatura ter de ter uma obra grande porque senão o país não anda para frente.

“A história de como cheguei a Cabo é muito bonita”, sorri René enquanto explica que o Cabo é o líder do grupo de forcados, é ele que decide quem são os oito homens que vão pegar o toiro, tal como quem é que o vai enfrentar em primeiro lugar. “O nosso grupo estava praticamente parado. Éramos apenas cinco ou seis forcados que andávamos por aí sem saber o que fazer”, com poucas corridas de toiros marcadas, René foi convidado para ser cabo, porém, como sentia que não sabia o suficiente, lembrou-se da lição do avô quando tinha oito anos: “procura as respostas nos cornos do bicho”. “Olhei para o mapa e vi Portugal”. Sobre esse país à beira mar implantado sabia duas coisas: “tinham um grande grupo de forcados em Vila Franca de Xira e nele pegava um forcado que era Cigano e que se dava a conhecer pelo nome de Caló”.

Carlos Teles, “Caló”, nasceu numa família cigana de Vila Franca de Xira, mas odeia falar sobre isso, justificando-se quase sempre com a mesma retórica: “eu vejo-vos, mas vocês não me vêm a mim”. Da infância conhece-se pouco, apenas que era muito próximo do pai que o levou a pegar toiros pela primeira vez na praça de vila franca de xira. Quando conheceu René na primavera de 2001 ficou comovido com a amizade do grupo de forcados Mazatlecos. “A amizade que eles têm é tão profunda. É o mais puro que eu tenho visto na forcadagem. Fazem dois mil quilómetros para ir ver um toiro. Dois mil quilómetros para levarem porrada e terem aquela amizade. O toiro é um complemento da nossa vida. A amizade não se compra nem vende. Somos obrigados a entregar-nos. Sai naturalmente. É amor!”.

A primeira coisa que René reparou em Caló foi o entusiasmo com que este falava. Falava do orçamento de estado com a mesma dicção de que falava sobre fazer amor. A voz grave podia ser confundida com raiva para alguém que não fosse ribatejano e René só entendeu isso após conviver com ele na tertúlia de Vila Franca. Passados 16 anos de amizade confessa que a brutalidade com que Caló fala é das coisas mais puras e verdadeiras que já encontrou na vida. “Conhecer o Caló foi algo impressionante… ‘Los tiempos de Diós son perfectos’, aquilo que aprendemos com ele e com os forcados de Vila Fanca foi a essência de pegar toiros: o principal não era o animal, mas sim os valores que giram ao redor da festa. O toiro defende-se por si mesmo. Nós temos de ser dignos diante dele e transmitir isso, seguir esses valores à letra”.

Um Renault branco com sirenes no capô ofusca o fado gingão que lateja das colunas distribuídas no coração de Vila Franca e anuncia numa voz espactacularmente sinfónica a corrida de toiros daquela noite. “Veja o cavaleiro António Ribeiro Telles”! René levanta-se da cadeira e repousa a mão direita no ombro de Caló. “Não há famílias perfeitas. Mas nos forcados pomo-nos de acordo de uma forma muito fácil: ninguém está acima do grupo. Podes não gostar, mas, se é o melhor para o grupo, tu estás aqui para servir.”, as palavras de René têm um travo amargo para Caló.

Em Abril de 2011, numa corrida televisada na Póvoa do Varzim, Caló tinha avançado pela Arena naquela que seria uma das suas últimas corridas. Quando os campinos abriram as portas de madeira e um toiro negro saiu disparado, Caló fez algo que nunca tinha feito, pediu ao Cabo Diogo Palha para pegar o toiro de cara. Diogo Palha não demorou muito tempo a recusar o pedido em favor de Pitó. “O toiro não mentia que era para ganhar o prémio”, diz Caló enquanto arrasta as pupilas para cima e afirma com alguma melancolia no timbre ríspido que ver o Pitó a apertar o estômago contra o focinho do toiro lhe causou inveja. Nessa noite, os forcados estavam eufóricos por terem ganho o prémio de melhor pega da corrida e, durante o jantar, Caló perguntou ao Cabo: “nunca pedi um toiro e no dia em que o pedi, tu não mo dás?”, naquele momento e com uma voz de empatia e compreensão, Vasco Palha disse-lhe, “Caló sem dúvida que o grupo de Vila Franca não se entende sem ti e todos os meninos que querem ser forcados, querem ser como tu, mas há uma coisa: eu não estou aqui para isso, eu estou aqui para procurar o bem do grupo e considerei, por cima de ti que és uma figura emblemática, que quem tinha de o pegar era o Ricardo, o Pitó”. Entre a amargura, Caló abre uma garrafa de Trinca-Bolotas e esboça um sorriso, “O cabo fez aquilo que significa ser cabo, assegurar o melhor do grupo”. Uma mulher alta e ruiva empoleira-se no corrimão à beira do Rio Tejo e diz risonha, enquanto olha para os dois forcados, “um ribatejano sem vinho é como um jardim sem flores”.

René regressou a Mazatlán diferente. Aprendeu em Vila Franca a ser Cabo, a ser líder: “Os outros confiam em mim e a primeira coisa que tenho de fazer é retribuir essa confiança com ações certas, mas também sempre pondo o grupo acima de qualquer forcado: nenhum forcado é mais importante do que o grupo”. Se antes o grupo tinha estagnado, agora com a liderança de René voltavam a atuar nas maiores praças do México. Forcado de metro e meio, entra no balneário com a pujança de um leão, “tenho de fazer algo muito difícil: há três ou quatro horas estes homens eram pessoas normais e agora vão fazer uma coisa extraordinária que é pegar um toiro”. Esta missão torna-se ainda mais difícil num balneário onde há um enxame de pensamentos e medos, “a tua mente muitas vezes diz para não ires porque já não há necessidade. Mas nós vivemos para aquilo!”

“Lidero sempre dando o exemplo dentro e fora da praça”, afirma com convicção enquanto usa como prova o dia do seu casamento. “A Teresa e eu vivemos muitas coisas juntos e ela é, também, apaixonada por toiros”. Teresa é apresentadora na estação de televisão de Mazatlán, tem um cabelo longo escuro e os músculos das pernas muito definidos. Conheceram-se numa praça de toiros e numa praça de toiros casaram-se. “Obviamente fomos à igreja e eu não me trajei na igreja, mas a boda civil fizemo-la numa praça de toiros. Soltámos algumas vacas, ela pegou de vestido!”, gargalha René enquanto suspira, “foi uma festa com aquilo que nos define. Tal como para uma mulher é um sonho vestir-se de branco, para mim casar-me vestido de forcado foi um sonho. Levo a farda mais além dos toiros. Não é pegar toiros, é pegar a vida.

121 foi o número que lhe marcaram a ferro quente mal iniciou o desmame com um ano de idade. 121 foi o seu nome. Corria destemido e livre no horizonte mexicano da Ganadaria Teofilio Gómez. O erguer do peito após a pastagem emanava a elegância dos seus descendentes, os Bos Primigenius, toiros primitivos que viviam na Ásia, África e Europa e cujas imagens foram perpetuadas nas pedras e paredes em Lascaux, Altamira e Foz Côa. O próprio arregalar das narinas mostrava que o 121 não era apenas mais um toiro Bravo de Lide. A potência que ele manifestava em cada desempenho na praça de tentas – uma praça que existe na ganadaria e que serve como espécie de observatório de qualidades do toiro – esbugalhava os olhos dos produtores e mesmo dos matadores que ali treinavam.

Quando o 121 cumpriu três anos levaram-no com esforço para uma carrinha que o transportou durante dez horas até Mazatlán. Com os cornos “delanteros” empoleirados no metal da traseira da carrinha fechava os olhos durante as interrupções da viagem de dez horas. O descanso parecia incerto e o destino também.

René Tirado empoleirava as mãos morenas na trincheira da praça de Mazatlán enquanto analisava os comportamentos daquele toiro com o número 121 estampado na pele preta malhada. Os arranques eram incertos. A ferocidade com que os cornos perseguiam o cavaleiro Pablo Hermoso de Mendoza e o seu cavalo castanho escuro já com marcas de sangue nas coxas e no abdómen. Por momentos sentiu o nervosismo a subir-lhe à tripa tal como quando fitou os olhos do primeiro toiro que pegou naquela mesma praça.

A mulher de René estava na bancada com as mãos delicadas espremidas contra o plástico vermelho do assento. Cansado, o 121 caminhou agressivamente até ao canto da arena enquanto o cornetim tocou e René e o grupo de forcados Mazatlecos alinharam-se em frente ao toiro. René deu um passo em frente e citou-o. O toiro virou-se e bufou. Passo a passo foi percorrendo com os pés o caminho que o 121 já tinha atravessado com os olhos. Com a pata ameaçou investir ao ouvir mais um grito de René. O silêncio preencheu a praça. No meio do pó e da areia, a tensão entre os olhos do forcado e os olhos da besta era incendiária. Num rasgo animalesco, o toiro lançou-se a René. Com o abdómen contraído e as veias da mão sobressaídas, René expandiu o torso e tentou envolver o pescoço do 121. Porém, num movimento mal calculado, o toiro içou o corpo de René e perfurou-o na coxa esquerda, penetrando a artéria femoral. Caiu na arena com a perna esvaída em sangue e com os olhos fechados. Os companheiros temeram o pior.

Levado numa maca, acordou no hospital com dores insuportáveis. Temia mais do que tudo não poder voltar à forcadagem. Temia isso mais do que perder a habilidade de andar ou de fazer o amor com Teresa. Mas passados seis meses de fisioterapia intensa, despediu as muletas e regressou aos treinos.

“Quando era mais jovem, inconscientemente queria ter várias cicatrizes para parecer um mauzão e, agora,”, diz entre gargalhadas, “tenho algumas. Deixam-me muitas lembranças e fazem com que cada vez que tome banho, cada vez que me olhe ao espelho, não me esqueça do amor que tenho a isto, não me esqueça dos valores, mas também não me esqueça que dói. Mas amar dói. Antes queria para mostrá-las, hoje vivo-as.”