Editorias, Opinião

A pedagogia da televisão

A televisão, enquanto medium, é uma peça chave para a compreensão da cultura contemporânea. No último quarto do século XX, o pequeno ecrã assumiu um papel omnipresente nos lares da sociedade – e Portugal, claro, não foi excepção. Hoje, com o advento dos novos media, assentes em plataformas digitais, a televisão continua, sem sombra de dúvidas, a ser protagonista no dia-a-dia dos cidadãos.

Actualmente, observamos que os hábitos de consumo de media, por parte das novas gerações – os chamados nativos digitais, nascidos a partir do virar do milénio –, são fragmentados. Isto é: os jovens desdobram-se por diversos media (desde o smartphone ao tablet, passando, irremediavelmente, pela televisão), consumindo um pouco de tudo, aqui e ali – sem um padrão definido, diga-se. Neste sentido, o smartphone assume-se, cada vez mais, como um terminal agregador de media, na medida em que, num mesmo dispositivo, podemos efectuar inúmeras tarefas, entre elas, ver televisão.

Contudo, as gerações mais velhas (leia-se, nascidas antes de 2000) continuam a encontrar na televisão o meio privilegiado para consumir informação e entretenimento. Em relação à primeira, apesar de esta estar disponível twenty-four-seven (que é como quem diz, 24 horas por dia, 7 dias por semana) nos meios digitais, a verdade é que os noticiários das 20h continuam a ser momentos de culto para as famílias portuguesas – como se a televisão fosse um santuário. Quanto ao entretenimento, os reality shows, desde a estreia do Big Brother, em 2000, na TVI, ou, mais recentemente, os programas da categoria 760, típicos das tardes de domingo, são um bálsamo (aliás, um veneno – abordarei este tópico, de seguida) para uma considerável fatia da população nacional (facto que se confirma pelas elevadas audiências destes produtos televisivos).

Tendo em conta o cenário atrás descrito, quer queiramos quer não, a televisão acaba por assumir um papel pedagógico junto do espectador. Não se trata, aqui, de reduzir a discussão à dicotomia serviço público versus privado, descartando, consequentemente, toda e qualquer responsabilidade inerente à dita televisão comercial. É certo que o âmbito das duas é distinto – isso não está em causa. Contudo, não devemos partir do princípio que a televisão privada tem carta branca para fazer tudo o que der na real gana dos seus directores. Há riscos que não devem ser pisados e, em Portugal, há já alguns anos que isso acontece. A decadência de certos programas tem efeitos nefastos na educação e na formação cívica da sociedade – não apenas das crianças mas também dos adultos. A linguagem verbal, os gestos, os comportamentos e as ideias veiculadas tendem, por um lado, a dar péssimos exemplos (sendo que alguns são condenáveis por lei, como é o caso da violência doméstica – há dias, vi uma cena num reality show em que o elemento feminino do casal agredia verbal e fisicamente o companheiro) e, por outro, a emburrecer/estupidificar os espectadores (são exemplos dessa virose os programas dos 760 e os pseudo-comentadores que tanto gostam de dar bitaites nos programas das manhãs, enquanto as donas de casa – na sua maioria, idosas – estão a preparar o almoço).

Infelizmente, em Portugal, sofremos de um problema profundo de iliteracia. Por esta razão, as pessoas são facilmente ludibriadas por aquilo que vêem e ouvem na televisão, tomando, assim, tudo o que lhes é dito por verdades absolutas. A (quase) inexistência de sentido crítico torna os espectadores presas fáceis. A expressão popular “come e cala” faz todo o sentido neste contexto. E a televisão está recheada de maus exemplos: as crónicas criminais (repletas de julgamentos gratuitos), os senhores doutores (assim, poupa-se dinheiro nas taxas moderadoras), os senhores psicólogos (que tão bem rotulam as pessoas), a máquina-da-verdade (um autêntico tribunal), entre outros.

Quantas crianças estão horas a fio sozinhas em frente a um ecrã de televisão, como forma de ocupar o seu dia-a-dia (em alternativa às tradicionais brincadeiras de rua)? Não querendo soar moralista, a televisão bombardeia as crianças com lixo e com conteúdos que poderão induzi-las a enveredar por caminhos menos recomendáveis. Já lá vai o tempo em que os desenhos animados ditos violentos (nomeadamente, o Dragon Ball) eram um álibi perfeito para as preocupações dos pedagogos e dos encarregados de educação. Hoje, visto à distância, o assunto não parece assim tão grave. Isto porque, agora, os programas televisivos (quer de informação quer de entretenimento) não têm qualquer pudor em mostrar tudo (quando digo tudo é mesmo tudo). Exemplos? Velórios e funerais em directo, corpos mutilados, mortes, violência física e verbal, sexo explícito (não me estou a referir a filmes pornográficos porque esses estão identificados como tal), entre outras barbaridades. Se as crianças estão sozinhas sem um adulto que lhes controle o que vêem ou que, pelo menos, lhes explique o que estão a ver, as crianças vão assimilar esses comportamentos como norma. E, depois, admiram-se de haver, cada vez mais, violência nos namoros na adolescência (desvalorizada pelos próprios jovens, imagine-se), entre outras tragédias.

Não querendo ser saudosista, no meu tempo, em idade pré-escolar, foi com a televisão que aprendi as letras do alfabeto, a escrever e a ler algumas palavras, a contar, e, ainda, algumas regras cívicas. Na época, em plenos anos 80, a série infantil “Rua Sésamo” era uma autêntica tele-escola, um exemplo perfeito de como um programa consegue, ao mesmo tempo, desempenhar o seu papel de serviço público (neste caso, no ponto de vista educativo e pedagógico, uma vez que também ensinava valores e regras de cidadania) e o de entretenimento (no final das contas, tratava-se de um programa infantil).

Resumindo e concluindo (até porque o texto já vai longo), apesar da proliferação dos novos media digitais, a verdade é que a televisão continua a ser o meio privilegiado para a maioria da população. A sua presença no quotidiano dos cidadãos confere-lhe um papel pedagógico de extrema importância que, em momento algum, deve ser subestimado. Seja informação ou puro entretenimento, os conteúdos televisivos devem, acima de tudo, respeitar a moral e os bons costumes de uma sociedade democrática e civilizada. Se tal não acontecer, as entidades reguladoras devem, na medida das suas competências, monitorizar e, se necessário, punir as condutas menos próprias.

O Marcos Melo escreve ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.

AUTORIA

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Diz que é o cota da ESCS MAGAZINE. Testemunhou o nascimento do projeto, foi redator na Opinião e, hoje, imagine-se, é editor dessa mesma secção. Recuando no tempo... Diz que chegou à ESCS em 2002, para se licenciar, quatro anos mais tarde, em Audiovisual e Multimédia. Diz que trabalha há nove no Gabinete de Comunicação da ESCS – também é o cota lá do sítio. Diz que também por lá deu uma perninha como professor. Pelo caminho, colecionou duas pós-graduações: uma em Comunicação Audiovisual e Multimédia (2008) e outra em Relações Públicas Estratégicas (2012). Basicamente, vive (n)a ESCS. Por isso, assume-se orgulhosamente escsiano (até ser cota).