Análise ao discurso de André Ventura
“André Ventura demite-se da liderança do Chega e volta a candidatar-se” – foi esta uma manchete do Jornal Económico para descrever o discurso de André Ventura (AV) na noite das eleições presidenciais. Ora, não encontro melhor descrição para a figura de AV. Um político que afirma em entrevistas que sempre andou em escolas públicas, mas que andou numa escola privada, mas que nunca teve hipótese de andar em escolas privadas; um político que afirma que não deveriam ser usados os conceitos de “extrema-direita” ou “extrema-esquerda”, mas que nos minutos seguintes os usa; um político que diz acreditar na liberdade, mas que defende a prisão perpétua e cujo partido se posiciona como anti-aborto; e um político que promete que se demite, mas dias depois afinal não. Este é André Ventura.
O seu discurso, na noite de 24 de janeiro, provocou sensações diferentes a cada português, tendo provocado em mim o medo e o desprezo. Mas talvez o problema é que essas emoções um dia se possam transformar num grande pesar, principalmente num pesar de vermos alguém como AV ter qualquer tipo de significância política no nosso país, sendo essa significância maior do que o único deputado de um “partidozeco” que apenas nos deve servir de lembrança de um fascismo que nunca voltaremos a aceitar. E, assim, com a possibilidade desse inferno hipotético no horizonte, quero alertar para algumas “bandeiras vermelhas” no discurso de AV.
Em primeiro lugar, não podemos ignorar que AV disse, como se nada fosse, as seguintes palavras: “Eu humildemente posso olhar para mim próprio e agradecer a Deus por me ter colocado a mim como a voz deste país.” Piscamos os olhos e de repente AV tem Direito Divino? Durante um confinamento AV, de facto, fez-nos viajar… até ao século XVII. De repente, a cara de AV mistura-se com a de Luís XIV e ninguém sabe bem o que acabou de acontecer. Não me alongando na forte contradição entre ser humilde e achar que foi colocado por Deus, pois contradições são a especialidade de AV, apenas me questiono sobre se queremos dar poder e importância a alguém que pensa que quem lhe está a dar voz não são os portugueses, mas Deus, especialmente num estado laico.
Outro alarme que deve soar bem alto nas nossas cabeças é a referência de AV à rede de extrema-direita que se está a alastrar na Europa. No seu discurso, o candidato indica que recebeu “chamadas da grande maioria dos líderes europeus do [seu] grupo de id”, líderes estes da, segundo AV, “verdadeira direita” da Espanha, Itália, França e Alemanha. AV refere-se a Salvini (Itália), que esteve envolvido num escândalo pelo facto de se recusar a celebrar o Dia da Libertação do seu país relativamente às forças nazis, e a Le Pen (França), que se afirma apoiante do neonazi anteriormente mencionado e a quem foi ordenado um exame psiquiátrico. O apoiante espanhol é Abascal, do partido VOX, tendo como valores o antifeminismo em pleno século XXI e espalhar fake news sem vergonha, transformando casualmente percentagens de 1% para 80%. E a última personagem desta triste coleção é o partido AfD, da Alemanha, cujo porta-voz teve de ser despedido por dizer em 2020 que não se importava de gasear ou de abater os imigrantes. Contudo, e infelizmente, estas amizades demasiado prováveis não nos surpreendem quando o lema de AV é o de que devemos ser radicais, porque “Deus vomitará os mornos” – para AV, ser morno é ser equilibrado e moderado.
Em acréscimo, o candidato presidencial que não sabe quanto custa um quilo de açúcar “nem de outra coisa qualquer”, nas suas palavras, mas que tem sempre uma palavra a dizer acerca da economia, marca os seus discursos com um clima de guerra alarmante. AV usa nos seus discursos expressões como “exército”, “mudar Portugal”, “combatentes do Ultramar”, “adversários”, “derrota”, “radical”, “transformação enorme”, “derrubar”, “estalo”, “avalanche”, “estamos a ir para a luta”, entre outras. Um discurso político numa democracia não devia usar estas conotações de força, de oposição extrema, como se de uma competição se tratasse e o importante fosse derrubar o inimigo. Um verdadeiro democrata incentiva a pluralidade de partidos e enfatiza que o poder de escolha está nos cidadãos. Ao invés disso, AV afirma, com toda a certeza, que “não haverá Governo em Portugal sem o Chega”, incentiva guerras mesquinhas com os outros candidatos e cultiva a divisão. Esta será a segunda “bandeira vermelha”: um partido ou candidato que abertamente queira limitar os participantes na democracia e use um vocabulário violento muitas vezes indica o princípio do fim da democracia, se o deixarmos.
Ademais, será de sublinhar a forma estratégica – ou, se formos honestos, a forma enganosa e falaciosa – com que AV decidiu anunciar que tinha tido mais votos do que os adversários que lhe ficaram atrás todos combinados. AV diz “esmagámos a extrema-esquerda em Portugal” e depois, como explicação, indica que teve mais votos do que os votos combinados dos candidatos do PCP, BE e IL. No entanto, é facto que o Partido Iniciativa Liberal não é um partido de esquerda. AV sabe isto muito bem, mas escolhe subtilmente colocar algumas alegações erróneas para dar força ao seu discurso e persuadir os ouvintes menos atentos. Já não é a primeira vez que este político adota “factos alternativos” para que a audiência simpatize com ele e este deverá ser um ponto de alerta: verifique o que o candidato diz, não confie cegamente naquilo que é dito e seja mais exigente com a verdade.
Por último, temos mais um exemplo da tão característica incoerência de AV: durante o seu discurso queixa-se muito dos “ataques mais vis, baixos e incompreensíveis” que lhe fizeram, declarando-se uma vítima. No entanto, ele próprio acusou um político de ser um avô bêbado, outra candidata de ser histérica – apesar de não ser ela que grita e gesticula que nem louca com uma música de fundo – e uma terceira de ser pouco séria por usar batom vermelho. Existe mais baixo e incompreensível? Este é o político que tenta ganhar um debate com referências a batons, mas que depois critica os seus oponentes de falarem de batons, e o político que ainda agora chegou, mas que já diz que a candidata portuguesa com mais votos na corrida a Belém não é bem-vinda em Portugal. André Ventura vê a linha que delimita o ridículo e ultrapassa-a velozmente.
Concluo, citando AV, pois, pela primeira vez, não conseguiria passar a mensagem melhor que ele: “Sempre defendi que os políticos têm o seu tempo e o seu prazo de validade. E o problema que temos hoje é não se saber sair (…). Saber sair é muito importante.” Apenas acrescento que às vezes devemos ser nós a ouvir os conselhos que damos aos outros.
Artigo revisto por Miguel Bravo Morais
AUTORIA
A Constança é aluna de Relações Públicas e Comunicação Empresarial, sendo uma nerd pela estratégia e pela comunicação interpessoal. Com uma paixão por escrever e debater, a escrita de opinião sempre foi o elemento natural desta autora. O seu objetivo é conseguir ser versátil na escrita ao abordar todo o tipo de temáticas e receber feedback que a ajude a elevar a sua escrita para o próximo nível.