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“As Telefonistas”: mulheres fictícias, histórias reais

AVISO: Este artigo contém spoilers.

Nos últimos tempos, as produções espanholas da Netflix têm tido um grande destaque no catálogo da plataforma e “Las Chicas del Cable” não é exceção. Embora seja uma série que retrata os anos 20, são discutidos temas bastante atuais como a homossexualidade, o aborto, a violência doméstica e o feminismo.

Tudo começa em Madrid, em 1928, no momento em que as telecomunicações atingiam picos no seu desenvolvimento e eram necessárias milhares de telefonistas para estabelecer as ligações que se cruzavam por todo o mundo. Lídia, Ángeles, Carlota, Marga e Sara são as principais telefonistas e personagens desta história, acabam por se tornar amigas e, juntas, procuram uma vida melhor, mostrando-nos a sua evolução individual e conjunta, ao longo da série.

Todas possuem personalidades distintas e a série retrata cada uma delas com particularidades únicas:

LÍDIA (Blanca Suárez)

Fonte: YouTube

Lídia é a personagem que narra toda a série. É uma mulher extremamente independente e ferozmente sedutora, algo que, na sua época, era incomum de se fazer transparecer voluntariamente.

Determinada e sempre no limiar entre a razão e a emoção, tem uma vida completamente fora dos padrões estabelecidos para as mulheres do seu tempo, tendo dedicado toda a sua vida à causa feminista e à libertação da mulher das garras do machismo. Ao longo das temporadas, Lídia tem de enfrentar dilemas que envolvem as suas relações amorosas, inicialmente com Francisco Gómez, mas, posteriormente, com foco na que desenvolve com Carlos Cifuentes. Consequentemente, ganha como inimiga Doña Carmen, a sua sogra, que se opõe a esta união, devido ao facto de Lídia pertencer a uma classe social inferior à do seu filho (a protagonista era uma das empregadas que trabalhavam na Companhia de Telecomunicações da família Cifuentes). Quando descobre que está grávida, Lídia entra em pânico pelo facto de saber que a sua filha não será aceite pela família Cifuentes, já que a maquiavélica Carmen de tudo fará para impedir o nascimento da sua neta, incluindo chantagear Lídia para esta abortar.

Durante todo o enredo, esta personagem vai progredindo na sua carreira como telefonista, tendo que se adaptar aos novos desafios que originam a sua nova posição dentro da companhia telefónica e na família Cifuentes, como um novo elemento da mesma, enquanto os seus inimigos planeiam variadas formas de a derrubar.

Fonte: Instagram

Durante a Guerra Civil de Espanha, na 5ª temporada, Lídia é presa num campo de concentração, para onde o regime ditatorial do país envia qualquer pessoa que ouse desafiar as leis. Severamente torturada e castigada, pelo facto de não se conformar com as imposições, Lídia revela-se uma autêntica guerreira ao ajudar todas as mulheres que foram encarceradas. Executa um plano para fugir do campo de concentração com todas as mulheres, com a ajuda de Camila Salvador (interpretada por Valentina Zenere), uma famosa cantora de ópera argentina, que promete uma fuga rumo à Argentina, em busca de melhores condições de vida. Para salvar milhares de mulheres que se encontravam presas, no campo de concentração e num regime autoritário, Lídia abdica da sua própria liberdade, tornando-se numa inspiração para o movimento feminista e motivando todas as mulheres a reivindicar os seus direitos através das suas vozes, para terem uma vida digna, tal como ela sempre tentou fazer.

ÁNGELES (Maggie Civantos)

Fonte: YouTube

Ángeles é uma mulher casada. Porém, demora a perceber que vive numa relação abusiva na qual, além de sofrer de violência doméstica, é traída e humilhada pelo seu marido, Mario. Esta personagem candidata-se à posição de telefonista, apesar do facto de Mario não apoiar a sua decisão de ter uma carreira, proibindo-a de sair de casa para poder controlar toda a sua vida.

Cansada de uma vida de maus tratos, Ángeles tira proveito das suas funções unicamente domésticas e começa a envenenar o seu marido através das bebidas e comida que lhe serve, deixando-o completamente debilitado e doente. A certa altura, Mario descobre o plano da mulher para o matar lentamente e os dois têm uma discussão extremamente violenta, na qual a telefonista acaba por descarregar o seu ódio e raiva e acaba por finalmente assassinar o seu marido.

A morte de Mario vai permitir mudar radicalmente a sua vida: aterrorizada, mas ao mesmo tempo aliviada pelo facto de se ter libertado de um casamento de fachada, Ángeles transforma-se numa mulher atrevida e completamente sedutora, encontrando no inspetor Cristóbal, que está a investigar o “desaparecimento” de Mario, um novo amor.

Esta personagem é deveras importante pela mensagem que representa: na época, o casamento era entendido como uma união eterna e os divórcios eram mal vistos, por isso, Ángeles sofria agressões físicas e psicológicas, em silêncio, nas mãos de um homem que a inibia de ser uma mulher livre e autêntica.

MARGA (Nadia de Santiago)

Fonte: PopTv

Marga nasceu numa aldeia conservadora e tradicional e a sua chegada a Madrid, em busca do primeiro emprego, vai mudar a sua vida por completo: a sua simplicidade e inocência rapidamente a permitem apaixonar-se por Pablo, com quem irá partilhar uma linda história de amor. No entanto, o seu casamento vai ser posto à prova com a chegada de Julio, irmão gémeo do seu marido, com quem terá um caso que, apesar de não intencional, trará uma avalanche de dúvidas e obstáculos nunca antes vividos por este casal.

No início, ela tem medo da vida citadina e pensa em voltar para a sua pacata aldeia, mas, com a ajuda das suas novas colegas da Companhia e, consequentemente, amigas, consegue ultrapassar todos os seus medos e, conforme os episódios vão passando, Marga torna-se numa mulher madura e cada vez mais confiante de si mesma. Ela percorre um longo caminho até se conhecer e aceitar que a única perspetiva da sua vida não é o casamento, mas descobrir o seu verdadeiro valor, através dos seus feitos como telefonista que acabam por aumentar a sua autoestima e reconhecimento próprio.

CARLOTA (Ana Fernández)

Fonte: Netflix

Nesta série, Carlota é a personagem responsável pela introdução dos movimentos feministas da década de 20. Durante o desenrolar da trama, para além do seu espírito selvagem, ela descobre a sua bissexualidade, o que traz ainda mais constrangimentos no seu seio familiar, sendo que já vivia reprimida por um pai severo, que eventualmente a expulsa de casa. Carlota procura ser livre e afirma não precisar do seu pai ou de um marido que a sustente, atitude esta que rompe com a ideologia da sua época, em que o casamento e a família eram exclusivamente as preocupações de uma mulher que sonharia dedicar a sua vida à criação dos filhos. A sua impulsividade e sentido de justiça tornam-na numa grande ativista dos direitos humanos: Carlota participa em várias reuniões secretas de sufragistas, onde encontra a sua chefe da Companhia de Telecomunicações, Sara, por quem se sente atraída e com quem acaba por se envolver. Miguel, o seu namorado, descobre o caso das duas, porém, depois de algumas discussões, Miguel, Sara e Carlota começam uma relação poliamorosa, em segredo, uma vez que estes assuntos eram considerados tabu nesta altura.

SARA/ÓSCAR (Ana Polvorosa)

Fonte: Netflix

Inicialmente conhecida por Sara Millán, chefe de turno da Companhia de Telecomunicações da família Cifuentes, esta personagem envolve-se sexualmente com Carlota e as duas acabam por se apaixonar. Sara tenta convencê-la a oficializar a sua relação, mas Carlota mostra-se reticente, já que todos iriam repudiar o amor entre duas mulheres: quando elas se beijam em público, Mario assiste ao momento e confronta Carlota, reagindo à situação com nojo, o que demonstra que aquela sociedade era extremamente homofóbica. 

Quando sente que pode confiar em Carlota, Sara acaba por revelar a sua história de vida: quando era uma criança, costumava vestir as roupas do irmão e sair de casa vestida de menino. O seu pai, embaraçado com a situação e com medo do que os outros poderiam pensar, castigava Sara de forma extremamente violenta, mesmo quando ela[1]  decidiu enfrentá-lo e explicar-lhe que se sentia como um homem preso num corpo feminino. Sara revela a Carlota que se identifica como Óscar e, a partir desse momento, assume a sua verdadeira identidade, lutando contra o preconceito das pessoas.

Ainda hoje em dia, a sexualidade e identidade de género são temas de discussão, no espaço social, portanto é importante referir que esta personagem representa a luta de todas as pessoas que vivem reprimidas, com medo de não serem aceites pelos outros.

Verificamos, assim, que, à partida, “Las Chicas del Cable” parece retratar apenas uma história de amor protagonizada por Lídia, Francisco e Carlos – que constituem o grande triângulo amoroso desta série. Porém, existe um contexto histórico que nos leva numa viagem pelas décadas de 1920 e 1930, em que o contexto socio-político de há quase 100 anos se liga com as questões sociais e os problemas de discriminação que são discutidos atualmente.

Fonte: El Mundo

O final marcante e simbólico é revelador da grande mensagem da série – a emancipação feminina – já que, passadas tantas décadas, todas as mulheres continuam a luta por uma vida livre e sem discriminação. Honrando as suas causas, as telefonistas deixam o seu testemunho como exemplo para todos, de forma a acabar com a desigualdade de géneros e com o machismo enraizado nas várias culturas até aos dias de hoje.

As cinco temporadas da série conseguem prender-nos durante horas a fio, seja pelos triângulos amorosos, pela grande mensagem veiculada em cada episódio ou, sobretudo, pelas vincadas personalidades de todas as personagens. Isto porque, apesar de serem mulheres fictícias, “As Telefonistas” representam histórias reais.

Artigo escrito por João Roldão

Artigo revisto por Beatriz Campos

Fonte da foto de Capa: Netflix

AUTORIA

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Atualmente a estudar Publicidade e Marketing, o João é apaixonado pelo mundo da comunicação: gosta de ler, escrever, desenhar, fotografar e está sempre a par de tudo o que se passa nas redes sociais e no mundo da televisão.
Na ESCS Magazine, encontrou uma grande oportunidade de se reinventar e pôr em prática a sua paixão pela escrita, sempre com criatividade, uma das suas ferramentas de trabalho.