BookCrossing: quando a história de um livro não se limita às suas páginas
Que os livros nos fazem viajar já todos sabemos. O que nos falta saber é que eles também viajam – e não apenas quando os enfiamos, a todo o custo, na nossa bagagem, mesmo que esteja a abarrotar, simplesmente porque não podemos prescindir da sua companhia.
A prática (ou movimento, se isso lhe conceder o grau alternativo que merece) de BookCrossing surgiu no ano de 2001, nos Estados Unidos da América. A palavra “BookCrossing” tornou-se tão popular que, três anos após a sua criação, foi adicionada ao Oxford English Dictionary como “a prática de deixar um livro em lugar público para que outra pessoa possa encontrá-lo, lê-lo e depois deixá-lo onde outra pessoa o encontre”. O objetivo é transformar o mundo numa grande biblioteca.
A comunidade ativa existente no site bookcrossing.com (que nem a pandemia se atreveu a parar!) conta com quase dois milhões de membros em mais de 130 países – só em Portugal são mais de dez mil. Ao explorarmos a plataforma, reparamos que o membro “countmonte” se encontra no primeiro lugar do ranking, não apenas naquele que corresponde ao total de livros registados, mas também no de libertações de livros. Clicando no seu perfil, percebe-se que este/a leitor/a vive no Reino Unido, tem 65 anos e juntou-se à comunidade em 2007, mantendo-se, durante os últimos catorze anos, em grande atividade.
No BookCrossing, há quem liberte livros e quem os cace ou encontre acidentalmente (o mais comum é que se faça tudo isso). Os autores do site sugerem: “Pega num livro que desejes partilhar com outras pessoas. Pode ser um que tenhas adorado ou que nunca mais queiras ler de novo. Tens uma segunda cópia do mesmo livro que recebeste no teu aniversário? Uma tia favorita continua a enviar-te livros de que ela gosta, mas de que tu não? BookCross it!”.
E como é que se liberta um livro no mundo? Antes de o fazer, é necessário registá-lo no site, gerando um Bookcrossing ID (BCID – uma espécie de passaporte do livro, único, para que se possa acompanhar o seu trajeto para onde quer que ele viaje). Depois, deves marcar dentro do livro o número gerado pelo sistema (pode ser uma nota manuscrita ou uma etiqueta disponível no site). Quando o teu livro já estiver registado, podes libertá-lo (aquilo a que chamam “release into the wild“) onde quiseres. Em bookcrossing.com, faz uma “nota de libertação” para que o mundo saiba que o teu livro está algures por aí. Se alguém o encontrar e o marcar como encontrado, recebes uma notificação. É explicado no site que “este tipo de partilha assemelha-se ao empurrão num filhote de pássaro para que aprenda a voar, ou mandar os filhos para estudarem numa universidade longínqua”.
E o que acontece se encontrares um livro de forma absolutamente aleatória num banco do autocarro, num café ou num jardim? Basta registares o respetivo número correspondente ao BCID e deixar uma nota em bookcrossing.com, para que todos saibam o que aconteceu ao livro, quer o tenhas lido, quer não, quer o tenhas detestado ou adorado. Os outros leitores agradecem.
Apesar do entusiasmo e da adrenalina que esta ação provoca, no final, tu é que decides o que fazer com o livro: há quem decida libertá-lo novamente (a tal “release into the wild” já supracitada) e há também quem opte por uma “libertação controlada”; ou seja, dá-lo a alguém diretamente – seja a um amigo, seja a um desconhecido–, o que nos permite conhecer o próximo destino do livro. Existe ainda uma terceira forma de fazer com que este precioso objeto parta em viagem: criar um ponto oficial de BookCrossing, ou seja, estabelecer um local físico onde livros são regularmente capturados e/ou libertados e com o qual os BookCrossers podem contar – criando, desta maneira, uma espécie de nicho de leitores. Além disso, o processo de encontrar livros pode ser facilitado através da possibilidade de criar uma wishlist na plataforma. Quem sabe se um BookCrosser solidário não te irá arranjar a obra em questão e fazer com que os teus desejos se tornem realidade!
Um dos livros mais registados é “Ojalá Jane Fonda nos ilumine”, do argentino Marcelo Juan Valenti. Segundo os registos que constam na sua página, foi libertado na Argentina e, desde então, esteve em Espanha, França, Suíça, Países Baixos, Finlândia, Cabo Verde, Rússia, Bolívia, Islândia, Venezuela e regressou à Argentina. No entanto, aqueles que leem atentamente os comentários captam a ‘batota’: o próprio autor imprimiu o mesmo BCID em várias cópias do seu livro (e ele mesmo trata de enviar algumas aos BookCrossers interessados), o que se traduz em falsas viagens, ainda que se possa compilar, na mesma página, todas as opiniões e impressões que o mesmo despertou nos seus leitores, independentemente do exemplar. Este está longe de ser um caso único no BookCrossing, mas não se deixem enganar: há livros (enquanto exemplares únicos e não enquanto meros títulos) que realmente viajam por aí, de cidade em cidade.
Ainda no fórum português, “Jota-P”, membro desde 2003, esclarece que “este site em que nos encontramos agora não é o BookCrossing em si, mas antes uma plataforma que permite aos utilizadores registar um livro na esperança de que, mais tarde, consigam vir a ter notícias dele”. Quando questionado sobre alguma situação insólita que lhe tenha acontecido no âmbito deste movimento, constata que, ali, os livros são o pretexto para se discutir sobre outros assuntos e até para se criar relações de amizade virtuais com outros BookCrossers, algumas das quais já teve a oportunidade de conhecer ao vivo (nomeadamente “marialeitora” e “irus”, quando visitou Vila Real e Bragança, respetivamente) – “Mas temo que não seja muito mais insólito que isso”. Acrescenta que os utilizadores portugueses do fórum não recorrem muito à libertação de “livros ao vento, pois acabam por privilegiar trocas mais ‘controladas’”.
“Marialeitora”, que se juntou ao bookcrossing.com em 2005, relembra o encontro com “Jota-P” (o qual “prometeu voltar e ainda não o fez“) e com outros BookCrossers, por exemplo, num “jantar de Natal, no Porto, onde trocámos livros, presentes, exclamações: ‘Tu és a/o X? Não te imaginava nada assim!”. Menciona ainda um almoço onde conheceu casais, os quais crê que se tenham conhecido através do BookCrossing, mas diz que deixará essa história para serem eles a contar. Uma vez, agendou um café no mítico Majestic, localizado na capital do norte do país, com outro membro do fórum português, “irus”. E a reação da sua família? Estava “preocupada, à porta, a espreitar para ver espantada como é que eu, uma mãe de família, me ia encontrar com uma desconhecida que ‘encontrei na Internet’. As minhas filhas acharam que eu era doida… Como me atrevia a furar uma regra que tinha imposto para elas?”. Nesse encontro, acabou por ganhar uma “irmã” – “o resto? São livros e gente generosa, simpática e divertida de que me orgulho muito”.
Por último, “irus” acredita que, ao fim de catorze anos de registo, ainda é uma “novata”. Do BookCrossing ficou-lhe “todo um universo literário que se abriu, com imensas sugestões, ofertas e empréstimos de livros, e autores de que nunca tinha ouvido falar”, mas, mais do que isso, as “amizades que de virtuais passaram a reais”. Confessa que “nunca houve deceções, antes pelo contrário, e algumas amizades foram até estendidas às respetivas famílias”. À semelhança do encontro com “marialeitora” no Majestic, recorda como, em setembro passado, teve um “blind date” com uma BookCrosser alemã, a berlinense “ApoloniaX”: “É mesmo aquele tipo de encontros em que a gente diz ‘sou aquela que está de mochila vermelha, junto ao ardina dos Aliados’. Fomos tomar um café e sei que, quando for a Berlim, já terei guia na cidade”. Conta que, apesar de não ter nenhuma grande história relacionada com a libertação de livros (sabendo que alguns foram encontrados alguns anos depois), o primeiro livro que a filha libertou, num banco de jardim em Évora, foi encontrado, no dia seguinte, no banco traseiro de um táxi.
Em bookcrossing.com, encontram-se disponibilizados fóruns em várias línguas. Os membros portugueses são bastante ativos, com “Jota-P” (claramente um dos mais assíduos e cujos livros já foram encontrados num banco de metro, numa cabine telefónica ou na mesa da estátua de Fernando Pessoa, em frente à A Brasileira, no Chiado) a sugerir uma “chuva de livros” no aniversário de cada um dos membros interessados em participar. Ou seja, a ideia – que se encontra em vigor – é enviar livros aos BookCrossers aniversariantes. Quem recebe também deve enviar aos restantes nas respetivas datas de aniversário. O organizador sensibiliza: “Se cada pessoa cumprir com o que é exigido, receberá no mês do seu aniversário o mesmo número de livros que terá de enviar ao longo do ano“.
Fazendo refresh no site, a listagem dos livros “libertados” e “capturados recentemente” encontra-se em constante atualização. Todos os dias são libertados e encontrados livros e livros. É certo que nem muitos são registados e que, se calhar, algumas pessoas chegam mesmo a ficar com eles. É de notar que nem toda a gente que encontra os livros poderá ter acesso à Internet – por questões socioeconómicas, por exemplo – e é precisamente aí que também se encontra a magia da prática de BookCrossing. O livro pode chegar a qualquer pessoa em qualquer ponto do mundo, pois este não faz discriminação entre idades, géneros, nacionalidades, etnias e contas bancárias.
Por mais que esta iniciativa possa parecer tentadora, nem toda a gente achou a ideia maravilhosa. Alguns autores insurgiram-se contra este conceito, afirmando que o mesmo contribui para que não se comprem tantos livros de escritores. Por que razão é que se haveria de pagar por algo que se pode obter gratuitamente? Os amantes de BookCrossing defendem, argumentando que, além de ter havido vários escritores que se assumiram fãs do movimento, o número de pessoas que compra livros com base nas reviews que leem no site é muito superior àquele que corresponde às pessoas que encontram, efetivamente, livros grátis no meio da rua.
Existe informação oficial que acrescenta valor a este argumento: “Este site não tem o objetivo de economizar dinheiro às pessoas. Na verdade, muitos dos nossos membros compram duas cópias de todos os livros de que gostam, para que fiquem com um deles e libertem o outro! Embora esperemos que os nossos livros viajem pelo mundo de graça, o principal do BookCrossing é a jornada do livro. Se um determinado livro for encontrado numa loja de caridade ou de segunda mão, isso faz parte da sua jornada. O objetivo do BookCrossing não é tanto que os livros sejam ‘gratuitos’ (no sentido de não haver dinheiro), mas que eles viajem”.
Em suma, não se julga a forma como o livro o faz. O que interessa é que, efetivamente, lhe seja permitido viajar. Para os BookCrossers, o que é que é o mais importante, afinal? Apenas o ato de partilha, seja de que forma for. O resto é história!
Fonte da imagem de capa: remarka.city
Artigo revisto por Andreia Custódio
AUTORIA
Uma pessoa de muitas paixões. Por isso, licenciou-se em Informação Turística, está a terminar o Mestrado em Jornalismo e quer tirar Doutoramento em História Contemporânea. A ideia de ter uma só carreira durante a vida toda aborrece-a. A Inês gosta de escrever, de concertos, dos The Beatles, de Itália, de conduzir e dos seus cães. Sonha em visitar, pelo menos uma vez, todos os países do mundo.