Cá dentro faz frio
Acordaste-me. Despertaste-me do meu coma e isso não to perdoo. Estragaste-me a leitura. Mais, estragaste-me o cérebro e eu não sei como o arranjar. Cada vez que leio é a tua voz que oiço, o teu riso, pior… O teu desejo. E o meu. Tenho de parar de ler para não enlouquecer, resfriar os pensamentos. Respirar…As cenas de amor são as nossas, as minhas. Falo em voz alta para a minha voz estabelecer autoridade sob o clamor incessante dos meus pensamentos. Isto não é real. Mas o problema é que me sinto mais vivo quando me permito imaginar do que quando estou preso à realidade. O sonho é-me mais real que a vida, e isso não pode acontecer.
Sinto-me com frio, mas é verão. O calor do teu corpo abandonou-me, somente a lembrança permanece. E é tão insuportavelmente perfeita… O mundo ficou mais feio, as próprias cores parecem ter sido esbatidas. Também elas reconhecem a tua ausência, como se carregassem o fardo da tua partida. E carregam, têm de o fazer! O universo inteiro tem uma obrigação moral de fazer o teu luto. Pelo menos o meu universo, aquele que foi para sempre corrompido, dilacerado sem dó nem piedade. Amputado.
Nunca me esquecerei de ti, prometo-te. Aquela lua será sempre a nossa e voltarei, sempre que possa, ao nosso abrigo, à nossa casa…
Uma semana que pareceu um ano. A habituação vai ser certamente dura e morosa, mas é o que é e nada mais poderá ser. Outros tantos se passaram. Poderia dizer que não consigo respirar, que eras o meu oxigénio e que sem ti os meus pulmões cessam por completo. Não corresponderia à verdade. Eu respiro, apenas pior. Sinto o ar mais espesso, mais difícil de o puxar para mim. Tu não eras O oxigénio, apenas muito oxigénio e agora respirar tornou-se penoso, uma sentença vitalícia e irrevogável, mas necessária. Não morri nem o vou fazer (assim o espero). Sinto-me apenas permanentemente cansado, dorido por fora e por dentro. O meu coração está com cãibras e o meu cérebro dormente do esforço.
Deste-me os melhores anos da minha vida e isso perdoar-te-ei sempre. Tenho tantas saudades tuas, mas também minhas… O eu que era contigo foi o mais verdadeiro que alguma vez tive. Sem filtros. Exagero, a dor tem o poder de hiperbolizar a memória e longe de mim tentar conspurcar as melhores lembranças que alguém pode sequer aspirar a possuir. Mas dizia o que pensava e o que sentia sem hesitação, não estudava o chão antes de o pisar e pouca coisa no mundo se sobrepõe a esta liberdade.
Não pretendo parecer egoísta, como se tu só servisses para eu me sentir bem. A verdade é que o amor é efetivamente egoísta. Queremos essa pessoa feliz, mas connosco. Não aceitamos qualquer outro cenário, apenas este é razoável e até possível. Sempre quis a tua felicidade incondicionalmente. Mentiria se dissesse que não preferia que a escolhesses comigo, no nosso próprio mundo, no universo que criei de mim para ti, ou de ti para mim, ou mesmo qualquer outro que achasses adequado para cabermos os dois.
Peço desculpa. A culpa não é minha nem tua. Peço desculpa pelo mundo, pela irracionalidade e arbitrariedade imbecil do destino ou qualquer outra entidade que não merece o meu respeito, e pelas pessoas, que insistem em continuar a viver como se tu nunca tivesses existido, alheando-se da tua ausência, tentando em vão diminuir a tua importância. Mas tu importas, e demais. Foste o melhor ser humano que alguma vez conheci e desconfio de que o melhor que por aqui andou. Peço desculpa pelo que sinto, pelo que imagino sem ti. Uso-te para sonhar sem o teu consentimento e isso não é correto. Corroí-me por dentro. E sabe a pouco, a nada. É tudo o que me resta…
Continuo a acordar a pensar em ti e é a ti que recorro antes de adormecer. Recuperaste a minha inocência, a minha fé. Recuperaste-me de mim e isso não só te perdoo como te agradecerei para sempre.
Um homem dilacerado
“ O João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico”