Crónica: A fresta infindável
Partiram-me. Fui muitas coisas antes de estar despedaçada. Costumam dizer que, quando morremos, entramos numa espécie de sala de cinema, onde passa o filme das nossas vidas. Podem ser os sete segundos mais longos, mas também mais curtos da nossa existência. Simbolizam o fim, aquilo que foi e já não é. Nos meus sete alquímicos segundos, vislumbrei uma eternidade imperfeita.
Nem todos os dias foram maus. Tinha propensão a ser mais feliz quando raiava o sol. Ainda que nocivo, despoletava em mim um sentimento de aconchego. Mal de quem é alérgico ao calor da bússola improvisada, ou ao pó que dela advém. A mim nunca me fez impressão, tenho essa sorte. Não me agradava particularmente ficar empoeirada, mas todos os sacrifícios valiam a pena quando de calor se tratava. Sentia-me mais livre quando a temperatura aquecia. Via o que me rodeava de forma mais aberta, o que por si só já era uma vitória. Mesmo sem razão, acabava por me trancar para o mundo. Ser resguardada não é um defeito; o problema está em não dar a chave a outrem.
Nem todos os dias foram bons. Quando chovia, era inundada por negatividade. Afogava-me em pensamentos depressivos. Demasiada água a cair em mim deixava-me encharcada em mágoas. Contudo, se fossem partículas pequenas, conseguia tolerar. Em alturas de aborrecimento, recorria às gotinhas inofensivas para meu deleite. Apostava nelas como se de cavalos se tratassem e, mesmo sabendo que não enriqueceria ali, escolhia a potencial vencedora da corrida – aquela que, para mim, iria ser a primeira a cortar a meta. Nunca fui boa a ver para lá do choro das nuvens. Quem sabe fosse a falta de um limpa para-brisas incorporado aquilo que nublava o meu discernimento. Quando fazia frio de rachar, sentia uma obrigação ainda maior de amparar quem amei. Talvez tenha sido um sobretudo numa vida passada. Obrigada, inverno, por me embaciares os pensamentos. Os sorrisos esboçados desapareciam, rumando a um sítio que, para mim, permaneceu desconhecido. As declarações de amor, tal como o próprio, desvaneciam-se. As impressões digitais perduravam, ficando para sempre marcadas no meu cor. Se um dia me matasse, fá-lo-ia nesta estação.
Ter um coração de vidro pode estar no cerne de todos os meus dilemas. Não só porque se parte facilmente, mas também porque é difícil de penetrar. Acho que no final já não sentia nada, mas já nem sei se cheguei a sentir alguma coisa. As criaturas de hábito deixam-se levar pelo vento ou pela maré. Dou por mim a questionar se vivi ou se apenas existi. As circunstâncias da vida são fodidas.
Se os olhos são o espelho da alma, para a próxima quero ser blindada. Gostava pouco de me expor, porque sentia-me inevitavelmente nua. Estar despida de proteção está correlacionado com o aumento da vulnerabilidade, e espiar é feio. Enquanto vivi, detestei que me fitassem… sabe-se lá se estão a vasculhar as minhas entranhas. Foram raros aqueles a quem concedi autorização para abrirem os cortinados do meu ser. Era comum ouvir dizer que cada um aprende com os seus erros, mas isso faz-me supor que talvez tenha emergido como um erro de fabrico. Das duas uma: ou fui de lenta aprendizagem, ou incorrigível. Os erros, para mim, nunca foram unos. Será que cometer sucessivas vezes o mesmo faz de mim masoquista? De facto, levei umas valentes chapadas da realidade.
A habilidade de que dispus para ver o reflexo das pessoas virou-se contra mim inúmeras vezes. O superficial não chegava, eu ficava sempre sedenta por mais. Mergulhar nos cacos de criaturas partidas cortou-me em sítios que ficaram permanentemente incuráveis. Mas aí a culpa é minha – ninguém me mandou ser nadadora-salvadora sem sequer saber nadar.
Foi tão fácil sujarem-me. Permiti que me tocassem com dedos imundos e as cicatrizes não sararam a tempo da minha partida definitiva. Por mais que me lavasse, há coisas que a água não limpa. “A água lava tudo”, mais um provérbio utilizado para me iludir. Por mais que esfregasse – e esfreguei –, não fui capaz de me sentir imaculada. Enfim, deviam ter-me diagnosticado um transtorno obsessivo-compulsivo por limpezas.
Parece que ainda sinto o cheiro ao fumo do cigarro derradeiro que pairava no ar quando o vizinho do quinto andar saltou do parapeito. Eu bem disse que o clima gélido amplificava as tendências suicidas. Quanto tempo será que aguentou no limbo? Que momentos lhe passaram pela mente nos sete segundos antes de tudo acabar?
Agora está na hora de baixar os estores e sucumbir à escuridão com que a noite constantemente me perseguiu. Não me interpretes mal; a lua é hipnotizante e as estrelas são, para mim, um sonho que nunca se tornou realidade – mas tudo isto é sinónimo de trevas. Durante a noite, assistia a mais despedidas. As sombras eram assustadoras e impossibilitavam-me de achar as serenatas reconfortantes. É ao anoitecer que os ladrões invadem propriedades alheias, roubando tudo aquilo que (me) resta. Foi no meio desta obscuridade que me quebraram. Finalmente! Que segundos intermináveis.
Artigo revisto por Lurdes Pereira
AUTORIA
Depois de integrar a maioria das secções da revista, a Mariana ficou encarregue de incumbir esta paixão aos restantes membros. O gosto pela escrita esteve desde sempre presente no seu percurso e a licenciatura em Jornalismo veio exacerbar isso mesmo. Enquanto descobre aquilo que quer para o futuro, vai experimentando de tudo um pouco.