De que são feitos os Sonhos?
A Biblioteca Municipal Central do Palácio de Galveias esteve movimentada, na tarde de 29 de abril. O frenesim sentia-se logo na entrada: máquinas fotográficas, gravadores, câmaras, e um ou dois jornalistas mais convencionais com um caderno de notas à mão. Alguém deu o sinal, finalmente: “É ele, vem aí”. E quando Manuel Alegre entrou na Biblioteca, qualquer pessoa que ali se encontrasse por acaso perceberia de imediato que tinha acabado de chegar a razão para toda aquela agitação, nesse final de tarde.
A apresentação do seu novo romance, Tudo É e não É, teve início por volta das 19:15. Apresentado pela escritora Maria Teresa Horta, escritora e amiga de Manuel Alegre, este romance é, nas palavras desta, uma obra que “toma conta dos leitores desprevenidos”, tornando-os “dependentes, viciados, estonteados, mas ávidos”.
Tudo É e não É, nas palavras de António Valadares, protagonista do romance, é um livro que “começa na véspera”. Narração de um sonho que persegue, de forma recorrente, a personagem principal apresenta-se como uma mistura entre o real e o onírico, que leva o leitor a pegar na confusão e ansiedade de António Valadares e a torná-las suas. Contando com várias referências a nomes que nos podem ser familiares, desde Kafka a Ulisses, passando por Paul Newman e por Trostky, este romance captura o leitor, nas palavras de Maria Teresa Horta, “na malha apertada das suas mil e uma histórias”. Assim, e como o próprio autor referiu, Tudo É e não É descreve o dilema, que aparenta ser infindável, de “ter perdido o fio à meada”.
Autor de uma vasta obra literária, que inclui poesia, romances, contos, e mesmo ensaios, Manuel Alegre leva-nos, em Tudo É e não É para o mundo onde as cidades são todas e sempre a mesma, onde tão depressa estamos perante a beleza de Ava Gardner como nos encontramos fechados num carro, em Paris, de pijama, onde a ficção e a realidade são indistinguíveis; onde o paradoxo e o ilógico reinam. A citação da contracapa parece, por si só, ilustrar o dilema: “Estarei acordado, estarei a sonhar? Nunca mais conseguirei saber. Shakespeare sabia: ‘Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos.’”
Manuel Alegre, “poeta da condição da liberdade” (como Maria Teresa Horta o caracterizou), falou depois da apresentação feita pela amiga escritora. Agradecimentos à editora, abraços aos escritores e poetas, e então começou o discurso, enquanto as máquinas fotográficas continuaram a disparar. Falando um pouco mais sobre o romance (sublinhando o facto de este não ser autobiográfico), o escritor aproveitou para deixar também uma crítica à nossa sociedade, onde “a vida pública está marcada pelos mercados, que se sobrepõem à cultura, à comunicação, à política e até aos próprios Estados”.
Sendo confrontado, antes de a apresentação terminar, com algumas questões de cariz político, o escritor demonstrou o seu desagrado perante a situação, rotulando-a como um “desrespeito à cultura e à literatura” – declaração esta que mereceu os aplausos da maioria dos presentes na sala.
E se é verdade que “quando um homem se põe a caminhar/ deixa um pouco de si pelo caminho”, verdade é também que Manuel Alegre já deixou muito de si não apenas para a área da literatura mas, acima de tudo, para Portugal.
Fotografia: Leonor Fernandes
AUTORIA
Leonor Fernandes é alentejana de gema. Veio para Lisboa para estudar Jornalismo, em 2011, mas não a impede de “tirar o ‘i’ do lête para pôr no caféi”. Editora da secção de Literatura da ESCS MAGAZINE desde o retorno da revista, faz também rádio – na ESCSFM, o programa cultural Sala de Projeção – e faz parte do número f, o núcleo de fotografia da Escola Superior de Comunicação Social. Para além disso, escreveu ocasionalmente para a obvious e publicou um artigo na Hush Magazine. Até escrever um livro que ninguém vai comprar, escreve sobre livros que todos devem ler.