Desculpa, Novo Acordo, mas a evolução é outra coisa
Já ouvi vários especialistas e uns quantos não especialistas defenderem com unhas e dentes, e com algumas palavras caras, o Novo Acordo Ortográfico como uma coisa positiva. Volta e meia, reabre-se a discussão e lá vem a afirmação convicta de que a mudança na ortografia foi uma evolução para a Língua Portuguesa. Mas eu tenho de admitir que essa promessa de evolução não é capaz de me convencer.
Não me levem a mal os defensores desta nova grafia. Não é uma embirração gratuita ou uma teimosia injustificada. A minha aversão ao Acordo de 1990 tem uma forte razão de ser e uma justificação bastante plausível. Ou aliás, várias. E, antes que se levantem vozes a acusarem-me de falta de bom senso e de ser tendenciosa, fiquem desde já a saber que não me oponho à evolução linguística. Muito pelo contrário.
A evolução é sempre uma coisa necessária, até mesmo para a língua. A verdade é que sem ela não teria chegado até nós a grafia que tantos hoje (eu incluída) estimam e se recusam a abandonar e ainda se escreveria escripta em vez de escrita, orthographia em vez de ortografia ou syntaxe em vez de sintaxe. Portanto, mais tarde ou mais cedo, seria de esperar que um novo processo de reforma do português viesse dizer às consoantes mudas para seguirem o exemplo dos phs e irem dar uma voltinha ao bilhar grande. É até natural e aceitável para mim que tal tenha acontecido, por mais que me custe abandonar os bons velhos cc e pp silenciosos. Só que o Novo Acordo não se limitou a limpar da ortografia o que não se expressava foneticamente.
As mentes na origem da criação e implementação da nova forma de escrita quiseram justificar o desenvolvimento no saldo das suas contas bancárias com mais qualquer coisinha. E assim o Acordo Ortográfico de 1990 veio também furtar aos meses e às estações do ano as suas maiúsculas, destituindo-os da sua importância.
Claro que, do ponto de vista linguístico, esta pequena mudança não afecta significativamente a escrita – argumentarão os defensores da “evolução”. Admito até que não afecte. Nem a mim me incomodaria a existência de tal alteração. Contudo, há que ver que, a certa altura, se torna um pouco maçador ver o nosso Word a sublinhar a azul a palavra primavera e a questionar se não quereríamos antes dizer prima Vera – principalmente para mim, que tenho muitas primas, mas nenhuma com esse nome.
Apesar do ligeiro incómodo que esta substituição de maiúsculas por minúsculas me trouxe, era pessoa para conseguir viver bem e (quase) em paz com este inovador acordo. O problema é que ele decidiu tocar também nos acentos e nos sinais ortográficos das palavras, tornando iguais na redacção termos com fonéticas e significados distintos. E este retrocesso linguístico irritou-me.
O sujeito a favor do Novo Acordo há-de perceber que uma mudança deste calibre implica o desassossego de um pai benfiquista (ou, pensando bem, de qualquer outro clube) que se sente a ler o jornal desportivo e que seja subitamente atacado pela emblemática frase “Ninguém para o Benfica”. O sujeito a favor da nova grafia tem ainda que perceber que o pêlo da minha cadela não é o mesmo pelo formado a partir da contracção de por mais o, e que a pêra na minha fruteira não é pera, o calão de espera ou a antiga fórmula de para. No entanto, se o sujeito fiel defensor deste Acordo não ficou ainda convencido com estes meus argumentos, creio que posso apresentar mais alguns.
No seguimento deste saque de acentos, a ortografia de 1990 roubou também uns quantos hífens, desligando palavras que deviam de facto estar ligadas e unindo excessivamente outras tantas. O fim-de-semana, essa palavrinha mágica que todos adoramos, desfez-se em fim, de e semana, o que obviamente não tem a mesma mística. A emblemática mini-saia também perdeu o charme com o seu novo s. E muitos antis e cos e contras viram-se fundidos nas palavras, perdendo a sua identidade individual.
A par desta cleptomania, existe ainda no Novo Acordo uma bipolaridade que permite a coexistência de duplas grafias em palavras onde as consoantes não são mudas, o que não só é incoerente, como nos coloca a problemática de descobrir se o enunciado se refere ao fato de tecido ou ao de factual.
Portanto, os advogados de defesa desta nova grafia que me perdoem, mas isto não é evolução linguística. Nem é, como tipicamente ouço afirmar, a uniformização do português nos países de língua portuguesa, porque as palavras não só não são redigidas da mesma forma em todos eles, como a acentuação que lhes é dada não é sempre a mesma. É apenas e só uma mutilação a esta pátria que é – já dizia Fernando Pessoa – a Língua Portuguesa.