Do grande para o pequeno ecrã – a reinvenção do cinema?
Entro numa sala de cinema. Sento-me na fila do meio para ter uma melhor perceção do ecrã. Pouso o balde de pipocas e espero pelo início do filme. Terminam os anúncios. Terminam os trailers.
Boa. Está quase a começar.
Só falta o habitual aviso para desligar os telemóveis durante a sessão. Ecrã totalmente escuro.
Vai começar.
Inicia-se a apresentação dos estúdios e produtores. Entra em cena o logótipo da 20th Century Fox ritmado pela sua icónica música de fundo. Já trauteio a melodia na minha cabeça até que…
Ouve-se um telemóvel tocar.
Vê-se um ecrã a brilhar.
Alguém está a roncar.
Esta última situação em nada contribui para o texto que vou apresentar, mas achei pertinente salientar, visto que fazer uma sesta em salas de cinema tem-se tornado tão constante quanto o uso de telemóveis durante as sessões – este sim, o tópico sobre o qual irei tecer alguns comentários.
O assunto foi debatido recentemente na Web Summit, no painel Cinema Reimagined, que contou com a intervenção de Rosario Dawson e Michael Shamberg. Quer a atriz, quer o produtor, afirmam que é escusado lutar contra a utilização de smartphones e outros meios tecnológicos no cinema. Para se adaptar às necessidades atuais das pessoas, propõem a criação de conteúdo cinematográfico que interaja com os utilizadores de telemóveis, podendo estes viver nos seus dispositivos móveis aquilo que as personagens experienciam no filme.
Interpreto as palavras de Dawson e Shamberg de duas formas distintas. Por um lado, desejo que o cinema se continue a reinventar e progrida enquanto arte. Por outro, sinto que incentivar a utilização de telemóveis desvirtua a natureza tradicional de uma sessão de cinema. Pegando naquilo que uma pessoa sábia me disse: “O cinema devia ser imersivo e não dispersivo.”.
Desde sempre que o cinema foi pensado para ser apresentado numa enorme tela perante uma vasta plateia – não se chama “grande ecrã” à toa. A experiência do público, quer visual, quer sonora, é muito mais intensa, realista e memorável quanto maior o espaço no qual as cenas são reproduzidas. Todos os pormenores são pensados para centrar as atenções da audiência no ecrã, sem desviarem o olhar nem mesmo para verificar se o balde de pipocas já está vazio. Permite-nos entrar noutro universo sem nunca deixarmos o nosso. Permite-nos sentir certas emoções e sensações sem nunca as sentirmos verdadeiramente. Estes são os intuitos de quem faz cinema: produzir um fator imersivo nos espetadores. Todavia, todos os envolvidos na execução cinematográfica deparam-se com um imbróglio crescente: a redução do período de atenção humana.
Com os intermináveis progressos tecnológicos, muito se alterou na nossa mente. A paciência esgota-se rápido, queremos respostas imediatas, a exigência é maior. O ser humano precisa de estar numa posição de poder em que a sua atenção é garantida através da interatividade.
Tudo isto está a um bolso de calças de distância. Os utilizadores têm total controlo sobre o seu smartphone, comandam o seu destino, decidem o que querem fazer e com quem interagir. É preciso dinamismo constante e o cinema não permite nada disso. Retira-lhes toda a sensação de domínio e interação, transmitindo-lhes uma sensação de insignificância. Para contrariar essa condição hierárquica desfavorável, recorrem aos telemóveis para se colocarem novamente no topo da rede de importância. Mesmo que não os utilizem durante a exibição do filme, muitos não resistem à tentação de divagar pelo Instagram ou conversar no Messenger durante o período de intervalo. Casos como este podem não acontecer em todas as sessões, mas tenho testemunhado um número crescente. A atenção já não se concentra no ecrã, está espalhada por vários pontos da sala, com maior incidência nos meios eletrónicos interativos nas nossas mãos. Este é o lado dispersivo que foi, inadvertidamente, introduzido no cinema.
É aqui que coloco as minhas questões. Qual a posição que a indústria deve tomar para se adaptar às mudanças comportamentais, mas nunca descurando o lado imersivo do cinema? Deve transferir-se gradualmente para os pequenos ecrãs dos telemóveis, incentivando interação, ou, pelo contrário, incutir maiores esforços para que o público não se distraia com as coloquialidades que os rodeiam?
Eu gostava de optar pela última, mas não tenho poder de decisão – raios, esta sensação de pequenez! Embora apoie a capacidade de reinvenção de qualquer meio, acredito que, neste caso, por mais apelativo e inovador que fosse, não iria contribuir para o já pouco bom senso do ser humano. Defendo que os telemóveis devem estar desligados numa sessão de cinema, quando muito em silêncio, desde que o utilizador se comprometa a não tocar nele. Autorizar que as pessoas tenham liberdade de manusearem os seus dispositivos é entregar-lhes o poder da sala de cinema.
Falando sobre a sugestão de Rosario Dawson, ainda que bem fundamentada, esta carece de alguma estrutura coerente e precisa. Posso-me contradizer quando afirmo que a ideia me suscitou curiosidade de vivenciar novas formas de fazer cinema, mas a verdade é que parece um conceito embrionário e pouco eficaz no que toca a obter um equilíbrio de poderes e atenção. Por exemplo, a partilha de experiências entre protagonistas e público pode não ser suficiente para nos concentrarmos unicamente no filme. Se uma personagem seguir uma linha de narrativa que um elemento da audiência não pretenda, será que este se mantém tão interessado como no início da sessão? Talvez seja necessário colocar o público num patamar de superioridade, controlando o rumo dos acontecimentos da história. Todavia, seria necessário despender tempo e recursos para o executar de modo exímio e convincente, que conseguisse agarrar os espetadores.
É por isso que as grandes produtoras cinematográficas devem colocar questões antes de adotarem medidas que se possam enquadrar com as novas exigências do público. É preciso pensar nos valores e propósitos que guiam a Sétima Arte desde os seus primórdios antes de dar dois passos para um caminho inverso, que ponha em causa a sua reputação.
Sei que a produção de obras cinematográficas será inevitavelmente diferente no futuro. Ainda assim, continuarei a achar que a transição do grande para o pequeno ecrã em nada contribuirá se não for bem planeada de modo a equilibrar os poderes e exigências dos intervenientes. Podem-me chamar de antiquado ou cético, mas a verdade é que quando se trata de um meio como uma expressão artística própria, tendo a defender a sua identidade original.