Editorias, Opinião

É um telemóvel, não é uma galáxia

*Olá. Bem-vindo à nossa sala de espetáculos. O espetáculo começará dentro de breves instantes. Pedimos o favor de desligar o seu telemóvel. Obrigado. Bom espetáculo.*

Caro espectador, neste momento, aí no lugar que ocupas, estás absolutamente desligado. E o teu problema, curiosamente, começa por estares ligado demais. Tens na tua mão um mundo inteiro a que chamamos smartphone do qual estás completamente dependente: um mundo que te quer nele e onde tu queres estar a todo o pequeno instante. Receias perder o TGV que move esse mundo só por não atualizares de hora a hora o mural do teu facebook, por não gostares de todas as fotografias que aparecem no feed do teu instagram, ou por não enviares constantemente 10 segundos de fotografias de má qualidade via snapchat. Os teus amigos chamam-te para conversas de grupo online, e perdes horas a escrever-lhes frases curtas enquanto pessoalmente só lhes dedicas escassos minutos.

Tens neste momento a tua perspetiva reduzida a um ecrã plano – ou vá, curvo, se já estiveres a par das últimas tendências no mercado da tecnologia. Só te importa o que se passa nesse espaço de cinco polegadas. Mas o mundo real tem muito mais do que essas cinco polegadas, sabes!? O mundo real vale muito mais do que um monte de pixéis. Mas tu não vês isso. Já não sabes levantar os olhos desse pequeno ecrã. Já não sabes procurar novas formas de ver o mundo.

Dás-te conta agora de que a luz começou a diminuir porque o brilho do ecrã do teu smartphone passou a notar-se mais e tiveste de o reduzir. Apercebes-te então, finalmente, de que não reparaste naquele pequeno sinalzinho sonoro, que odeias profundamente, e que passa antes de todos os espetáculos a que vais. Costumas apelidá-lo de “vozinha irritante”. De facto, ouviste-o tantas e tantas vezes que começaste a ignorá-lo e, por isso, há segundos nem reparaste nele.

Mas esse sinalzinho sonoro que tanto te irrita, ironicamente, está lá para ti. Para pessoas como tu. Para pessoas que não conseguem desligar-se do que se passa lá fora e concentrarem-se no que se passa naquele palco. No palco da sala onde tu pagaste para estar sentando. No palco onde haverá de decorrer o espetáculo que tu pagaste para ver.

Repara no ridículo da coisa: ainda há dois minutos publicaste no teu instagram uma fotografia do bilhete do espetáculo. Há dois minutos deste importância ao espetáculo ao abrir-lhe espaço no teu álbum precioso online, e, no entanto, ainda antes desse mesmo espetáculo começar já o estás a ignorar. Quanto vale este espetáculo para ti, afinal? Uma foto no teu instagram!? Pagaste um bilhete para assistir a um espetáculo a que não querias assim tanto assistir por uma foto!? Agora já começa a parecer-te ridículo, não é?

Estás a ver aquela senhora sentada na fila à tua frente, que está neste momento iluminada do lado direito por a luz de um ecrãzinho como o teu? Pois, ela não tem instagram. Nem smartphone, nem internet no telemóvel. Ela veio para assistir ao espetáculo. Para vivê-lo. Para ter mais tarde assunto com as amigas à mesa de um café qualquer, enquanto tomam um chá acompanhado com torradas. Para logo à noite, quando chegar a casa, se sentar ao computador, ligar o teu adorado facebook e falar à neta sobre os atores e sobre a história da peça. E, no entanto, depois de ter esperado semanas, depois de escolhido o lugar que lhe parecia ser o lugar certo, teve azar: calhou-lhe o lugar errado – um lugar ao lado de uma pessoa que, tal como tu, ignora o sinal sonoro.

Agora sentes-te mal, eu sei. Pensas em quantas vezes já estragaste espetáculos a outros espectadores. Não chegas a um número. Só sabes que deve ter acontecido várias vezes. Mas queres saber? Ainda há mais.

Lembras-te das caras do elenco que figuravam no cartaz? Também são pessoas. Pessoas que estão lá atrás nos bastidores a preparar-se para te oferecer um espetáculo a ti. Pessoas que estiveram semanas, meses a ensaiar, a colocar cada segundo das suas vidas neste trabalho. E eles sabem, eles veem. Quando o teu rosto fica iluminado pela luzinha da tua outra galáxia e ficas absorto nela, eles reparam. Distraem-se. Irritam-se. Sentem que não queres estar aqui. Sentem que o seu trabalho foi todo em vão, porque não te conseguem manter aqui. E isso atrapalha a sua prestação.

A cortina está agora a abrir-se. Os atores já lá estão para ti. Por isso, caro espectador, liga-te. Guarda esse tijolinho tecnológico no bolso. Recosta-te na cadeira e presta atenção ao espetáculo. Na próxima hora e meia, faz de conta que não existe mais nada. Afinal, já pagaste o bilhete, certo?

A Joana Costa escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico