Grande Entrevista e Reportagem

E vem aí a Madragoa

Em 2020 e em 2021, os bairros de Lisboa não puderam sair à rua na noite de 12 de junho, véspera de Santo António. As tradicionais Festas de Lisboa estiveram interrompidas durante 2 anos devido à pandemia de Covid-19 mas, com o acalmar da situação, foi dada luz verde em 2022 e Lisboa já se pode engalanar e preparar para um dos momentos altos do ano na cidade. As ruas enfeitadas, o cheiro a sardinha assada e as tradicionais marchas populares: tudo isto estava de volta para grande alegria dos Lisboetas.

O ano de 2022 era de grande expectativa para todos os bairros por se viver algo que já não era costume há algum tempo: por um lado, o facto de o vencedor da edição passada não ser Alfama, algo que nos habituámos a ver com bastante frequência nos últimos anos, e por outro, a interrupção de 2 anos. Apesar de já remontarem a 1932, só desde 1988 é que as marchas desciam a Avenida da Liberdade todos os anos, mas devido à situação pandémica, essa sequência fora interrompida.

De todas as marchas, houve uma que se destacou das demais e que “parou Lisboa inteira”. A marcha da Madragoa foi a grande vencedora das Marchas Populares de Lisboa 2022, algo que não acontecia desde 1994.

Com o tema “Para Sempre Madragoa”, a marcha deste bairro, além do 1º lugar, arrecadou ainda os prémios de Coreografia, Figurino e de Melhor Desfile na Avenida. O ensaiador foi João Medeiros, que também assumiu o cargo de letrista, juntamente com Mariana Peres, e realizou o figurino e a cenografia com Fauze El Kadre. A musicalidade das duas marchas inéditas, “Para Sempre Madragoa” e “Vem aí a Madragoa” ficou à responsabilidade de António Duarte Martins e Francisco Bahuto. Os padrinhos da marcha foram a influencer Ana Garcia Martins, mais conhecida como Pipoca mais Doce, e o ator Bruno Cabrerizo.

Foi no café Mascote da Madragoa que estivemos à conversa com João Medeiros, um dos principais obreiros deste título.

João Medeiros, ensaiador da Marcha da Madragoa. Fonte: Rodrigo Santos

Filho do bairro, entrou na marcha pela primeira vez em 2008, com 15 anos, e o seu amor pela marcha e pelo bairro fez com que não se conformasse apenas com ser marchante. “Assim que eu entrei na marcha e comecei a perceber como tudo funcionava comecei a desenhar figurinos por auto recriação, porque me apetecia, porque comecei a achar todo aquele meio muito interessante. Eu queria saber mais daquilo e pensava Porque é que aqui não fazemos isto? Aqui podíamos fazer aquilo? Mas sim, ao longo dos anos comecei a pensar Eu um dia gostava mesmo de fazer isto, gostava mesmo de ser o ensaiador da marcha”, conta.

Sendo alguém conhecido no bairro, as opiniões enquanto à sua entrada como ensaiador iam de extremo a extremo: enquanto uns lhe diziam que gostavam que um dia fosse ensaiador, outros consideravam ser demasiado cedo para João pegar na marcha. O João confessa que tinha um pouco de receio de que as pessoas “não aderissem tão bem”, mas apesar disso, a recepção acabou por ser muito positiva, como refere o próprio: “As pessoas gostaram muito, recebi muitas mensagens positivas, a desejar muita força, a dizer que estavam esperançosas de um bom trabalho e que estavam muito curiosas”.

A inspiração

A marcha da Madragoa conjugou o moderno com o tradicional. Os fatos em tons de azul e vermelho, fazem lembrar o mar e a paixão, podendo ainda ser vistas tatuagens nos marchantes. Já a cenografia tinha como elemento principal a rosa, aludindo à Rosa da Madragoa.

Fonte: Pedro Estevens

Até ser anunciado como ensaiador, todas estas ideias estavam guardadas num iPad, sem previsão de algum dia saírem de lá. Apenas algumas pessoas mais chegadas do João, como a Mariana ou o Fauze, as tinham visto, até que chegou a oportunidade e tudo aquilo que ele havia planeado saiu do papel. O resultado não podia ser o melhor, já que tanto a cenografia como os figurinos receberam a pontuação mais alta por parte do júri.

As letras das duas marchas inéditas, escritas por João Medeiros e Mariana Peres, gritam aquilo que os moradores do bairro sentem no peito.

A primeira, com o título “Para Sempre Madragoa”, fala sobre o amor ao bairro, que como refere a letra nunca acabará, fazendo ainda referência às gentes do bairro que já partiram. ”(…) E nunca deixarei/ De mostrar que serei/ De sempre/ Para sempre Madragoa (…)” “(…) Até os que cá não estão/ E não passaram em vão/ Mesmo do alto serão/ De sempre/ Para sempre Madragoa (…)”

A segunda é intitulada de “Vem aí a Madragoa” e apresenta um tom positivo e de confiança em relação a este regresso da marcha. É referido o facto de ser um dos bairros mais tradicionais de Lisboa e fortes nas marchas populares, sendo por isso “invejada” pelos outros bairros.

“(…) E vem aí a Madragoa/ E vem aí, vem regateira/ Vem aí e não vem à-toa/ Já parou meia Lisboa/ Vai parar Lisboa inteira/ Vem aí, vem regateira (…)”

“(…) E à chucha calada/ Falam nesta Lisboa/ Que vai ser invejada/ Por vir arrojada/ E ser a Madragoa (…)”

“Faltava arriscar naquilo que nós não arriscávamos”

Há 28 anos, desde a última vitória, que a marcha da Madragoa não tinha ido além do 2º lugar. Foram quase 3 décadas de expectativa, do “este ano é que vai ser”, mas faltava sempre algo para alcançar o desejado 1º lugar do pódio.

“Isto tinha que mudar, porque nós achávamos que a marcha da Madragoa precisava de começar a estar mais ao nível daquilo que estava a ser feito nas marchas atualmente, e acho que também faltava um bocado isso, vamos arriscar, faltava arriscar naquilo que nós não arriscávamos”, refere João.

Um dos maiores riscos foi o facto de irem calçados. A marcha da Madragoa participa nas Marchas Populares de Lisboa desde que as mesmas começaram, em 1932, e desde aí que tem o costume de ir descalça, sendo rara a ocasião em que isso não aconteceu. Este ano, entraram calçados, algo que à partida não foi bem recebido. “Assim que apresentei o projeto ao presidente Nuno Soares, a única coisa a que ele torceu o nariz foi : Nós vamos calçados? E eu respondi : Vamos calçados, mas a seguir vamos nos descalçar, isso faz parte do processo da coreografia. Ele aceitou, mas depois no ensaio geral, algumas pessoas quando viram que eles [os marchantes] vinham com sapatos na mão e que se começaram a calçar torceram o nariz (…), mas a maioria depois não se importou, achou a marcha tão maravilhosa, porque os marchantes estiveram lindamente, que depois mais nada importava. No pavilhão aquelas pessoas que ainda tinham aquele receio [da marcha ir calçada] esqueceram isso.”

Para João, outro fator que foi diferente em relação aos anos anteriores e que pode ter ajudado a alcançar a vitória foi a atitude: “A atitude que toda a gente tinha, os marchantes estavam muito unidos. Entretanto o bairro começou a perceber aquela essência que estava a ser transmitida e criou-se aqui uma energia tão positiva que tudo brilhava ainda mais”.

“Eu sentia a energia, (…) mas eu nunca senti que seria possível”

Após a exibição no Altice Arena, era da opinião geral que a marcha da Madragoa era uma das fortes candidatas a vencer, para não dizer a favorita. 2022 marca o ano de regresso da Madragoa de outros tempos. Apesar de se ter sempre mantido em lugares cimeiros na maior parte dos anos, desde 1994 que a vitória lhes fugia. A nível de títulos, já conquistou o 1º lugar em 10 ocasiões, ficando apenas atrás de Alfama, com 21 triunfos, que só ultrapassou a Madragoa em 2000, ao conquistar o seu 10º título, na altura.

Aliás, apesar de não ser a marcha mais titulada, é a única que detém o troféu de “Rainha das Marchas”, que lhes fora atribuído por ganharem o concurso 3 anos seguidos, entre 1963 e 1965, sendo por isso que as gentes da Madragoa afirmam confiantemente que são a única e verdadeira Rainha das Marchas.

Alguns dos 1º lugares obtidos pela Madragoa | Fila de cima: 1932 e 1964 | Fila de baixo: 1991 e 1994
Fonte: Facebook

Em relação ao ano passado, o João confessou-nos que quando assumiu as rédeas da marcha estabeleceu como objetivo fazer o melhor possível. “O que eu disse aos marchantes na primeira reunião foi: Nós temos de fazer o melhor que temos para dar. Para no final, se não ganharmos, só dizermos isto, Epá, foi injusto, nós mereciamos, em vez de Não ganhámos, pois, porque isto ou aquilo.

“Os marchantes acreditavam mais que eu, eram eles que me davam força e que diziam: João, nós vamos ganhar isto. Eu só comecei a acreditar [na vitória] a 100% na semana da avenida. Depois do pavilhão, eu senti Há aqui qualquer coisa que não está a bater certo. Havia uma energia qualquer no ar de Isto está a ser bom demais e alguma coisa de bom vai sair daqui”, refere João.

Uma nova era

O hiato de 2 anos veio, de certa forma, estabelecer uma nova era nas marchas populares, como defende o João: “Eu acredito que sim, e já tinha dito isso à CMTV na entrevista após a vitória, que eu achava que este regresso após a pandemia marca um novo ponto de partida nas marchas populares”.

“As pessoas tiveram tempo para parar e pensar naquilo que realmente querem para as marchas, o que querem evoluir”, acrescenta.

O ensaiador da marcha da Madragoa refere ainda que a vitória da Madragoa “pode ter dado alguma esperança a outras marchas, que são marchas fortes mas que ainda não tiveram aquele clic para ter uma vitória”.

Um dos pontos que marcam também esta “nova era” nas Marchas Populares de Lisboa é a aposta crescente nos meios digitais por parte das marchas, algo que o João sempre defendeu, como nos conta, por ser um meio que permite manter uma certa proximidade entre as pessoas de fora ou as que já não moram no bairro. Destaca também que, na sua opinião, a EGEAC, entidade responsável pela organização das Festas de Lisboa, deveria apostar mais na componente mediática das festividades: “Devia haver uma maior publicidade nas marchas (…) Era tornar isto mais dinâmico, porque o método de apresentação de tudo isto é o mesmo de há 20 anos, convém fazer disto uma coisa muito mais moderna, principalmente na parte do digital”.

Um dos exemplos desta falta de divulgação dos eventos é o caso da exibição na Altice Arena, um evento que acaba por ser conhecido apenas por quem é dos bairros e vai apoiar a sua marcha. “O Altice Arena só não está mais cheio, ou até lotado, porque não existe uma publicidade tão grande”, explica o João. “Porque não gravarem o pavilhão e transmitirem depois da avenida, até para as pessoas entenderem o porquê das classificações?”

Os efeitos da vitória

A vitória da marcha da Madragoa pode ser vista de vários pontos de vista diferentes: Pode ser vista como a primeira marcha a ganhar após a paragem forçada devido à pandemia, mas também como o regresso da “Rainha das Marchas” às vitórias, após 28 anos sem vencer. O que é certo é que esta vitória trouxe uma enorme visibilidade a um dos bairros mais populares e tradicionais de Lisboa.

Fonte: António Cotrim/Lusa

Um dos exemplos desta maior visibilidade é o perfil de Instagram da marcha. Neste momento, a marcha da Madragoa é a que mais seguidores tem, tendo obtido um grande fluxo de novas pessoas na semana em que ocorreu a vitória. “A pagina da marcha foi subindo, subindo, subindo [em número de seguidores] até que me disseram assim Sabes que a Madragoa é a marcha mais seguida no Instagram? (…) O nosso nível de visualizações, por exemplo, num storie, em poucas horas alcançamos as centenas e chegamos até a ter mais de 1000 visualizações, porque as pessoas têm muita curiosidade”, relata-nos o João.

Mas engane-se quem pense que esta visibilidade é apenas exclusiva das redes sociais. Como nos conta o João, o bairro também ganhou mais visibilidade, tendo recebido convites “para tudo e mais alguma coisa”. Isto é uma clara prova da grande importância que as marchas populares ainda detêm no panorama local e nacional, constituindo um elemento que, citando o João, “mantém viva a imagem de um bairro”.

As inscrições para a marcha deste ano foram abertas a 2 de janeiro e passados 10 dias já 100 pessoas se tinham inscrito. As inscrições encerraram no fim desse mês e alcançaram números nunca antes alcançados. Apesar do número de pessoas inscritas ter sido o mais elevado de sempre, o João descreve-nos o processo de seleção como sendo “relativamente simples”.

“2022 acabou”

A Madragoa entra no concurso deste ano com uma responsabilidade acrescida: é a vencedora em título e espera-se que vá defendê-lo. O João garante que tanto a comissão como os marchantes estão focados e que quer provar que a vitória de 2022 não foi só sorte: “A primeira coisa que combinamos todos na primeira reunião foi que 2022 acabou. Esqueçam os campeões, esqueçam os troféus, isso já não existe. Estamos em 2023, em 2023 não ganhámos nada ainda. Claro que estamos a trabalhar com a mesma intensidade, ou mais ainda, que no ano passado e quero muito que as pessoas continuem a sonhar connosco e que os marchantes continuem com a mesma energia positiva, porque nós queremos continuar a ganhar.”

Falta agora esperar para ver o que trará a Madragoa neste ano e se vão conseguir alcançar o tão ambicionado bicampeonato. Para o João, tudo é possível, sendo apenas preciso trabalhar para isso: “Eu disse-lhes [aos marchantes] na primeira reunião Se já houve marchas que conseguiram ganhar 2 ou 3 anos seguidos, nós também vamos conseguir, temos é de trabalhar para isso. Tem que acontecer, e para nós é este ano que vai acontecer, nós vamos conseguir o bicampeonato. Mas se também não acontecer no final de tudo vamos saber que estamos de consciência tranquila porque demos o nosso melhor e poderíamos ter ganho. Mas estamos a trabalhar para ganhar, isso sempre.

Este ano, a comissão da marcha é a mesma do ano passado. A Marcha da Madragoa vai desfilar no 1º dia de exibições no Altice Arena, dia 2 de junho, e é a 15ª marcha a desfilar na Avenida da Liberdade no dia 12 de junho.

Fonte da capa: Rita Chantre / Global Imagens

AUTORIA

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Desde cedo soube que queria ser Jornalista, mas a vida trocou-lhe as voltas e entrou em Relações Públicas. O Rodrigo continua com a mesma ambição e o curso em que está não representa uma condicionante para os planos que tem para o futuro. Como indeciso que é, ainda não sabe em que área do Jornalismo quer trabalhar, algo que vai tentar descobrir ao fazer parte dos diferentes núcleos que a ESCS oferece. O Rodrigo não gosta de falar na 3ª pessoa.