Literatura

Há livros que não nos cabem nas mãos – 4,3,2,1

Olá. Prometo que despacho a análise intelectual que se espera de um “crítico” quando se aprecia uma obra de arte – que é o que este livro é e ponto final.

Fonte: http://www.indielovers.es/regresa-el-mundo-literario-de-paul-auster-con-4321/

Vamos então a isto: Paul Auster, mais do que compreender o engenho da narrativa, a dinâmica intricada dos recursos estilísticos, ou mesmo a mecânica singular de conceber personagens impares, ele compreende sim a quase inaudível melodia da vida; e, embora não a partilhe em pauta, a música da linguagem invade os quartos de quem ousa abrir o livro e permite-se apenas escutar.

Pronto. Está despachado. Agora vamos ao que realmente importa.

Estupidamente incrível, meus senhores e minhas senhoras. Sim, é mesmo estupidamente incrível numa forma tão incrível que, sim, chega mesmo a ser estúpido.

Para começar não há nada que o Auster toque que não fique incrivelmente bem escrito. Mas isso já se sabia. O que ficamos a saber é a sua capacidade de não escrever, de utilizar o espaço entre capítulos como um elemento ativo da história que pretende contar. Assim, nesses pequenos espaços sobra apenas um silêncio opressor que é prontamente substituído pela harmonia da linguagem. Sentidos que invadem o quarto, a sala, a vida inteira.

Nesse momento, cada frase lida multiplica-se em 4, e este livro é a eterna resposta a todos os nossos “e se?”. E se tomar esta decisão? E se em vez de ser jornalista tivesse ido para gestão? E se em vez de virar à direita tivesse virado à direita? Quão diferente seria a minha vida, quão diferente seria eu?

No limite, acho que o Auster aborda a já velhinha disputa entre o contexto vs natureza, mas neste caso ele integra tudo. Pois estes Fergusons são simultaneamente o mesmo – na medida em que há raízes da sua essência que se mantêm inalteradas independentemente de tudo – e há exatamente o oposto – em que as circunstâncias são tudo e moldam-nos à sua caprichosa vontade. Uma coisa é certa: ele mostra-nos que a existência só o é realmente depois de o ser. E quão triste é apenas nos ser permitido viver uma.

Fonte: https://www.trend-online.com/al/brexit-meglio-evitare-scelte-affrettate/

Talvez seja isso que mais me marcou, que mais me identificou com a(s) personagem(s). Foi esse sentimento de que a nossa vida é demasiado curta para tantas possibilidades de existência, o que porventura ajuda a explicar o porquê de já ter querido ser ator; pela possibilidade, mesmo que momentânea, de ser outro; de viver mais vidas do que aquela que tinha direito, numa corrida contra o tempo em que não queres apenas ficar em primeiro, mas em todos os lugares da classificação.

E isso também certamente ajudará a explicar a minha paixão pelos livros. E desta não abdico por nada deste mundo.

Um pouco confusos? Não há necessidade, pois a premissa do livro é muito simples: compromete-se a narrar a vida de Archie Ferguson.  Só que este Archie tem um pequeno pormenor: ele é quatro. Ou seja, o livro narra quatro vidas potenciais da mesma pessoa em que pequenos e grandes eventos o(s) levam para caminhos únicos.

E as impressionantes 870 páginas (podendo induzir em erro para quem olha sem conhecer) escondem o facto que podia ter sido perfeitamente o dobro ou o triplo, mas o autor já ficou sete anos sem publicar um livro, até ele já devia estar farto de esperar.

Sim, é grande. Não, não o leiam a menos que o queiram mesmo ler, o que significa mais de dez minutos de cada vez. É preciso mergulhar de cabeça e preparar-se para o impacto. E sim, vale mesmo estupidamente a pena.   

Um homem que definitivamente não é quatro, mas gostava tanto de ser.

Artigo corrigido por Ana Rita Curtinha