I Care a Lot: preocupar-se tanto com tão pouco
Enquanto escritor e realizador, o britânico J Blakeson conseguiu a proeza de reunir, no mesmo elenco, vários nomes que não passam despercebidos ao espetador: a veterana e vencedora de dois Óscares Dianne Wiest (Edward Scissorhands), Eiza González (Baby Driver), Peter Dinklage (da série Game of Thrones) e, claro, Rosamund Pike – quanto a esta última, continua a ultrapassar a minha capacidade de compreensão por que motivo não arrecadou todos os prémios e mais alguns com o seu papel em Gone Girl.
Embora o filme tenha sido gravado em 2019 e estreado no ano seguinte no Festival Internacional de Cinema de Toronto, I Care a Lot (Tudo Pelo Vosso Bem em português) chegou até ao grande público, em 2021, através das plataformas de streaming Netflix e Prime Video.
Marla Grayson (interpretada por Rosamund Pike) é uma tutora profissional, impiedosa e implacável, nomeada pelo tribunal para ficar com a tutela de dezenas de pessoas de terceira idade, depois de estas serem consideradas incapacitadas (ainda que possam não o ser). A “leoa” – é assim que a protagonista se descreve a si própria – acaba por se apropriar de todos os bens dos seus clientes através de meios suspeitos, mas, ainda assim, legais. Grayson é a ‘mandachuva’ de uma teia manhosa, incrivelmente bem montada, que envolve, entre outros, uma médica, o proprietário de uma residência de idosos, um juiz ridiculamente ingénuo e, ainda, a sua amante e partner in crime, Fran (interpretada por Eiza González).
Marla preocupa-se, sim – com (quase) ninguém, sem ser consigo própria. Quando conseguem chegar até à sua ‘galinha dos ovos de ouro’ (ou ‘cereja’, como é chamada no filme), uma reformada com uma grande riqueza cujo nome é (presumidamente) Jennifer Peterson (interpretada por Dianne Wiest) – a qual não tem (presumidamente) herdeiros na família –, Marla e Fran veem as suas vidas colocadas em perigo. Evidentemente, estavam longe de imaginar que a sua mais recente presa possui ligações próximas a um perigoso elemento envolvido no mundo da máfia (Peter Dinklage).
Spoilers à parte, a britânica Rosamund Pike (com uma pronúncia norte-americana tão exímia que nos faz esquecer as suas origens) entrega-nos, uma vez mais, uma interpretação tão hábil e repreensível que nos faz ter uma vontade exacerbante de a atirar por um penhasco. Ao longo de praticamente duas horas, naquilo que é uma mixórdia de humor negro, crime e suspense improvável, mas, acima de tudo, bem-sucedida, a narrativa revela-se sádica, inteligente e pouco previsível. Que mais se poderia querer num filme? Conforme nos encaminhamos em direção ao fim, torna-se cada vez melhor. Durante os últimos trinta minutos são-nos apresentados vários possíveis desfechos, mas temos de aguardar até aos últimos derradeiros segundos para perceber a lição que J Blakeson nos procura transmitir.
I Care a Lot prova que, mesmo que a manipulação maliciosa e a astúcia triunfem muitas vezes no nosso mundo, a ganância tem limites e as nossas ações têm consequências. Neste caso, o céu não é o limite. A personagem principal acaba por se ver envolvida numa rede negocial tão ou mais perversa do que aquela que criara e que nos é imediatamente apresentada no início. Ainda que não tenha convencido todos os espetadores (existem críticas que deixam muito a desejar) e esteja longe de ser o filme do ano, esta longa-metragem é, indubitavelmente, uma agradável surpresa. O clímax parece que perdura do início até ao fim, não deixando o entusiasmo do espetador esmorecer. Vale a pena assistir.
Artigo redigido por Inês Sousa Martins
Artigo revisto por Ana Rita Sebastião
Fonte da imagem de destaque: oitobits.pt
AUTORIA
Uma pessoa de muitas paixões. Por isso, licenciou-se em Informação Turística, está a terminar o Mestrado em Jornalismo e quer tirar Doutoramento em História Contemporânea. A ideia de ter uma só carreira durante a vida toda aborrece-a. A Inês gosta de escrever, de concertos, dos The Beatles, de Itália, de conduzir e dos seus cães. Sonha em visitar, pelo menos uma vez, todos os países do mundo.