IN COLD BLOOD: a adaptação para o cinema da primeira obra de jornalismo literário – Parte I
David Fincher uma vez disse que realizar um filme reduz-se a três coisas: decompor um comportamento no tempo e controlar momentos que deviam ser rápidos, retardando-os, e os momentos que deveriam ser lentos, acelerando-os. A escultura que é feita do tempo é um elemento chave que define bem a adaptação de um filme. Em In Cold Blood isto é feito de forma magistral e até poética, justapondo o plot dos assassinos e da família Clutter e os seus acontecimentos posteriores. Visualmente, a opção pelo filme noir, promovendo naturalmente o jogo entre o claro e o escuro, evidenciados pelo preto e branco, luz e sombra, pretende usar esta estética como mais um elemento narrativo para vincar onde está o bem e o mal. No processo de adaptação, alguns elementos tiveram naturalmente de ser suprimidos, pois como o próprio Capote referiu: “se o filme fosse filmado como o livro, teria de ter 9h de duração”. A versão de 1967 do filme, que é aqui analisada – existe outra de 1996 bastante menos interessante -, tem 2h14 de duração.
Capote escolheu Richard Brooks para confiar a sua opus magnum porque acreditava que ele era o único diretor que concordava com o seu próprio conceito de como o livro deveria ser transferido para o cinema e que estaria disposto a arriscar nesta visão. Tanto Brooks como Capote queriam que o filme fosse filmado a preto e branco – o que em 1967 ainda significava um alinhamento com o realismo documental – e insistiam em escalar atores desconhecidos como os assassinos.
Desde o início do seu envolvimento com a adaptação para o guião que Brooks dizia que o filme de um livro que se destacou pela meticulosidade da pesquisa do autor deveria igualar ou superá-lo na criação de um efeito realista. Assim, muitos dos locais onde as filmagens foram executadas foram locais onde os eventos da história ocorreram, incluindo o exterior e o interior da casa dos Clutter.
O diálogo, sendo a maior parte ditada por Capote, apresentou desafios ao Production Code com o uso de termos inéditos no cinema como “gorgeous piece of butt” e “bullshit.”
Brook utilizou algumas obras primas “hollywoodianas” para a sua adaptação: claramente Psycho (1960) de Hitchcock com seu assassinato aleatório, uma América centrada na estrada, uma pequena cidade dominada pelo crime sensacionalista; e The Treasure of Sierra Madre (1948), usado como um ponto de referência recorrente para Perry e muito expandido a partir de uma única menção no livro de Capote. Tanto no livro como no filme, um dos objetivos de Perry é partir numa caça ao tesouro e, numa das cenas do filme, ele tem a irónica autoconsciência de que, ao ser reduzido a recolher garrafas de vidro à beira da estrada em troca de três cêntimos cada, ele está envolvido numa absurda reconstituição da caça ao tesouro do personagem de Bogart que ele tanto cultuava.
No seu cerne a questão central levantada, tanto pelo livro como pelo filme, é o questionamento sobre até que ponto é que o assassinato dos quatro membros da família Clutter pode ser entendido como pura maldade executada a sangue frio e até que ponto foi um acidente terrível num universo habitado por indivíduos caóticos onde tudo pode acontecer a qualquer um.
Por ser uma história factual, o realismo mostrado nas páginas e na tela acontecem de forma muito diferente, sendo a justaposição o elemento utilizado para interconectar as sequências, ao mesmo tempo que estabelece um paralelismo entre o plot de Perry e Dick, da família Clutter e dos investigadores do crime. No livro, o efeito de ir e vir entre os assassinos e os Clutter faz-nos ver os dois lados como habitando universos inteiramente separados. No filme, por outro lado, embora os extremos dessas vidas não sejam inteiramente contínuos, sentimos que todas as personagens pertencem ao mesmo mundo. Quanto à construção das personagens, apesar de ser Perry o mais redondo e complexo entre os dois, são as decisões de Dick que promovem a catálise da história.
O detalhamento exaustivo nas suas caracterizações e seu contexto levam a que alguma informação tenha obrigatoriamente de ser selecionada. Por exemplo, no livro Alvin Dewey, um dos detetives encarregados do caso Clutter, comenta: “Cheguei a sentir que conheço Herb e a família melhor do que eles próprios se conheciam”. Embora a técnica hiper-realista de Capote tente dar ao leitor a mesma sensação, o seu acúmulo de detalhes da vida dos personagens não produz exatamente a sensação de reconhecimento que temos no filme de Brooks. Além disso, a descrição que leva diversas páginas do comportamento e condição psicológica de Bonnie Clutter é apenas referenciada no filme por uma frase do personagem de Herb para Perry: “Ela não pode entrar em pânico”.
Fonte da capa: IMDb
Artigo revisto por Lara Alves
AUTORIA
Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.