IN COLD BLOOD: a adaptação para o cinema da primeira obra de jornalismo literário – Parte II
Relativamente aos elementos simbólicos, uma das razões pela qual o filme de Brooks alcança uma sensação de mundo maior do que o livro é o poder que os objetos assumem ao serem fotografados. As palavras impressas “pegadas” e “corda” são generalizações; no filme, essas pegadas e essa corda pronunciam o veredito da realidade sobre os assassinos. Além disso, no livro, as localizações precisam de uma construção lógica do leitor. Por outro lado, no filme, para além de fazer uso de alguns dos locais reais que o livro referencia, como dito anteriormente, dramatiza-os alcançando uma qualidade de abstração valiosa através dos contrastes a preto e branco e do jogo de luz reluzente em alguns destes locais como a loja de ferragens, a bomba de gasolina ou a rodoviária, em contraposição com, por exemplo, o monólogo final de Perry antes de ser executado – em que o ambiente de sombra justaposto com o brilho da chuva a escorrer do lado de fora da janela da cela é brilhantemente projetado no condenado como a representação de uma alma que chora, o que revela o brilhantismo e a potência destas simbologias na narrativa. Sobre esta cena, Brooks disse mais tarde que o efeito foi casual e apenas percecionado durante a pós-produção.
A crítica social também está presente de forma irónica nas referências que Dick faz quando questionado sobre a relação do criminoso e as suas tatuagens, enquanto ele responde com um discurso contra o conformismo americano, estabelecendo uma metáfora entre o distintivo policial e a honestidade e os símbolos e suas representações. Por sua vez, Perry acredita que se tivesse tido um acompanhamento médico saber-se-ia que ele não estava pronto para a liberdade condicional que lhe permitiu voltar ao Kansas, de onde havia sido banido.
O filme apresenta uma personagem que está no livro o tempo todo, embora sem qualquer tipo de descrição: Bill Jensen, o jornalista estoico e de aparência tradicional, mas que de alguma forma representa a ausência do narrador, que é Capote. No filme, assim como na vida real, mas não no livro, Jensen está presente na execução dos dois condenados. Mas, na vida real, Capote não teve estômago nem coração para testemunhar os últimos minutos de vida de Perry, com quem, depreende-se, ter-se-á envolvido afetivamente e cuja escusa de comportamento está tacitamente presente da história.
Numa anacronia in medias res, Brooks constrói um motivo visual das lembranças de Perry e alucinações sobre a sua infância. Em casa dos Clutter, quando Perry confronta Herb no porão, fotos do pai de Perry são cortadas na cena, fornecendo confirmação visual para a noção de que o assassinato de Clutter é a vingança inconsciente de Perry contra o seu pai. A cena final vai além, fazendo Perry confundir brevemente seu carrasco com ele. O encerramento do círculo narrativo que essa alucinação fornece sublinha o ponto principal de Brooks, que diverge do de Capote: para o realizador, a pena capital é o assassinato e, pela voz de Jensen, condena este acto através da fala do jornalista que, quando questionado sobre o nome do carrasco, responde: “Nós, o povo”. Fica assim entendido que a justiça foi feita.
Cada obra de true crime tem uma dívida tanto para com o livro como para com o filme de 1967, tendo a junção das obras representado as tradições de ‘cinebiografia’ e de thriller de ‘crime real’. O roteiro adaptado por Richard Brooks foi indicado ao Oscar e ao Writers Guild of America.
Fonte da capa: Lwlies
Artigo revisto por João P. Mendes
AUTORIA
Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.