Editorias, Literatura

Kokoschka, uma boneca “humana”

Detentor de uma escrita inteligível e de uma maneira bastante perspicaz de narrar, Afonso Cruz capta, desde o início da obra, a curiosidade do leitor para saber mais sobre a boneca que “se tornou fundamental para o destino de várias pessoas”.

Num momento inicial, a trama desenvolve-se à volta de duas personagens, Bonifaz Vogel, “um homem cheio de reticências cranianas” (p. 22), e Isaac Dresner, um jovem que viu o seu melhor amigo ser uma das vítimas da Segunda Guerra Mundial, em Dresden. Estas duas personagens desenvolvem uma relação separada por um soalho, onde Bonifaz, de um lado, ouve uma voz, que é a de Isaac, do outro.

Captura de ecrã 2015-12-20, às 16.35.52

Numa segunda parte do livro, deparamo-nos com a trama onde está inserida a história d’ A Boneca de Kokoschka, a boneca que é muito mais humana que muitos de nós. Desenvolve-se, primeiro, a história de Anasztázia Varga, uma mulher bastante altruísta e sorridente para a vida e para os outros, e, de seguida, desenrola-se a narrativa sobre a procura de Adele Varga pelo seu avô.

Na última parte do livro, conhecemos a história de Miro Korda, um guitarrista que tinha umas mãos demasiado grandes e que classificava as pessoas por acordes musicais. Ainda nesta última parte, ficamos aqui, sim, a conhecer toda a história de Adele Varga, uma mulher confiante que deixa qualquer homem a suspirar por ela, desde o momento em que esta foi educada unicamente pela sua avó Anasztázia até ao seu conhecimento da história amorosa entre a avó e Mathias Popa, um homem com um enorme insucesso literário. Forçando o destino, Adele, depois de ler o livro que o seu avô escrevera decidiu que tinha de ir ao encontro do final da obra de Popa, apaixonando-se, assim, por um guitarrista, ao som de Tears.

A Boneca de Kokoschka desenrola-se num complexo esquema de ligações entre as diferentes partes do livro e as suas personagens, pois a primeira história interliga-se com a segunda e, consequentemente, a segunda interliga-se com a terceira e última história. Ao longo da sua obra, Afonso Cruz tem a tendência para ser bastante irónico, chegando a ter um humor negro, rompendo assim com o ambiente compacto e consistente de certas alturas da trama. O autor ganha ao utilizar uma linguagem muito visual, pois todas as descrições, bastante pormenorizadas, levam o leitor a conseguir imaginar toda a narrativa tal e qual é descrita.

São utilizados vários provérbios que transmitem ao leitor certas lições de vida e o autor agarra em exemplos comuns para construir um paralelo entre a história e a realidade (“Não consegue dobrar (uma folha) mais de quatro vezes, pois não, Sr. Marlov? (…) Uma coisa tão frágil como uma folha de papel não se deixa dobrar e no entanto… um gigante nigeriano poderia ser dobrado vezes incontáveis.” – p. 166-167); apresenta, assim, um exemplo de uma folha de papel e compara-o com a vida de Eduwa, o gigante nigeriano, que se deixava dobrar e/ou ser traído por demasiadas pessoas.

Afonso Cruz foi especialmente inteligente por ter escolhido como título do livro A Boneca de Kokoschka, pois o leitor, ao ler a sinopse e o título da história, pensa que o livro desenvolve a narrativa sobre a vida desta Boneca, criando-se, assim, um mistério à volta da boneca que Kokoschka mandou construir; mas este mistério é rápida e facilmente descodificado. O autor leva também o leitor a refletir na sua própria vida com perguntas que “deixa no ar”, relacionando-as com a história das personagens (“(…) não teria sido melhor se tivesse optado de modo diferente?” – p. 213).

Captura de ecrã 2015-12-20, às 17.18.15

Contudo, este enredo peca por ser pouco linear, pois é uma história que não tem uma narrativa sequenciada. A obra é dividida em três partes; cada divisão começa com “novos” contextos e “novas” personagens, deixando, no final de cada parte, várias pontas soltas, sem um fim definido. Torna-se confuso para o leitor fazer certas ligações, o que o obriga, assim, a trabalhar a mente, uma vez que algumas personagens não estão presentes em todas as ações da narrativa, dado que vão aparecendo esporadicamente. Apenas na última parte é que as peças do puzzle se começam a juntar e começam a formar um quadro completo, onde todas as histórias e personagens se interligam umas com as outras. A obra é bastante interessante e cativante, a linguagem é simples e acessível, despertando a vontade de ler e saber mais. As personagens de Isaac Dresner, Anasztázia Varga, Mathias Popa e Adele Varga, e respetivas histórias, constituem a grande base da trama, e conduzem o leitor a fazer várias ligações entre elas.

Afonso Cruz afirma na sua obra que nela se fabricam vidas, longe da ficção, próximas da realidade. Assim, esta sua narrativa destina-se a leitores de perfis muito diversos e cada um deles é chamado a “viver” várias vidas diferentes da sua.