Cinema e Televisão

Late Night: o talento (também) usa calças

Em terra de machistas com o rei na barriga, todo e qualquer talento feminino é uma ameaça. Disponível na Netflix, Late Night, de Nisha Ganastra, estreou em 2019, mas em pleno 2021 continua a ser a representação perfeita de que o descanso à sombra da bananeira é a guilhotina do sucesso.

Late Night não é um amor à primeira vista. Não nos fascina durante os quinze minutos iniciais, nem nos deixa de olhos arregalados ao fim da primeira meia hora. Na verdade, diria que se assemelha maioritariamente àquele amigo (demasiado) inconveniente que, na verdade, se limita a existir com a sinceridade em piloto automático.

O plot de Late Night é simples: um programa com mais de 20 anos, há 10 com audiências a roçar os valores mínimos do aceitável e uma apresentadora que se recusa a crer que o único problema está em si e na estagnação do conteúdo que produz – ou, neste caso, manda produzir.

A persona única e irreverente de Katherine Newbury (Emma Thompson) é o epicentro de todo o enredo. Sem papas na língua, rainha do comentário mordaz, apresentadora do late-night show que criou há mais de 20 anos, esta estrela do stand-up em declínio deixa qualquer um petrificado.

Esta lenda do stand-up trabalha, desde sempre, com um grupo de guionistas e argumentistas que desconhece por completo, onde a estratégia (aparentemente falhada) passa por se limitar a atuar com o conteúdo produzido por uma equipa composta exclusivamente por homens com egos astronómicos, sem questionar aquilo que lhe chegava às mãos.

Emma Thompson no set de Late Night. Fonte: Vulture

Às tantas, um late-night show líder de audiências virou chacota no universo televisivo e o alegado lugar “de uma vida” de Katherine Newbury torna-se mais instável do que o ano caótico de 2020.

Katherine Newbury é conhecida no ramo artístico pelo seu humor peculiar e por rejeitar trabalhar com toda e qualquer mulher que revele uma particular aptidão para as funções que desempenha. No entanto, a ocasião faz o ladrão. Neste caso, o desespero implora por medidas excepcionais e Newbury vê-se obrigada a apostar todas as fichas e o trabalho de uma vida na nova estagiária, Molly Patel – uma novata sem qualquer experiência que surge com tanta motivação quanto o fascínio que tem pela recente patroa.

Como quem não quer a coisa (mas querendo), Molly vem desconstruir toda uma rotina de trabalho que há muito se tinha enraizado nos escritórios do Late Night. Como se de uma lufada de ar fresco se tratasse, a estagiária inofensiva vem chutar para canto os (alegados) guionistas maravilha que a menosprezaram desde o primeiro dia e que, há mais de 10 anos, empurram o programa mais para a penumbra.

Se Newbury é a prova de que ninguém é insubstituível; Molly mostra que o talento grita mais alto do que o machismo, a inveja ou qualquer ego frágil.

Todo e qualquer espetáculo tem um pingo de verdade e Newbury viveu, durante anos, a contar mentiras alheias. Falar da vida dos outros sem qualquer emoção à mistura está acessível ao comum mortal. No entanto, ter a coragem de descer do pedestal e ridicularizar a própria vida de forma intencionalmente engraçada é o que distingue um comentador de bancada de um verdadeiro artista de stand-up; e, neste caso, Molly representa a verdade que Newbury perdeu à custa do status.

Olhada de lado por ser mulher, por ser jovem, pelo tom de pele mais escuro com que desfila ou pela ousadia de remar contra a corrente, de forma leviana, Molly traz à tona problemáticas inerentes ao Movimento #MeToo, à masculinidade tóxica em contexto profissional (e não só) e, ainda, ao rótulo que advém da cultura que representa.

Mindy Kaling é Molly. Fonte: Women and Hollywood

Sem reservas, Molly acaba por se revelar a peça fulcral de Late Night. Não por desempenhar o dito “papel principal”, mas por conseguir carregar a trama às costas e alterar o rumo de toda e qualquer personagem com quem se cruze. Através de uma atuação exímia de Mindy Kaling, nasce uma personagem que, por si só, espelha a realidade de uma sociedade tóxica, claramente machista e incrivelmente preconceituosa. Sem artifícios ou manobras de diversão, Mindy Kalling consegue encontrar o equilíbrio perfeito entre o humor e a seriedade inerente aos assuntos que trata, enquanto, em simultâneo, cena a cena, nos conquista (cada vez) mais.

Uma autêntica comédia dramática à altura do rótulo que não foge do clichê, mas que finta a previsibilidade. Late Night Show é um autêntico must-watch para os fãs de entretenimento na sua forma mais crua.

No universo artístico, quando o conteúdo é fraco, o silêncio grita; e quando o talento se despe de ego, ouvem-se as palmas. No entanto, independentemente de tudo, quando as luzes se apagam, resta a essência. E, às tantas, é só isso que interessa.

Late Night vem relembrar-nos daquilo que importa, de uma forma bonita, ousada e irreverente. Em terra de sedentos por fama, quem se rege pelo amor à arte é rei – ou rainha, neste caso!

Artigo redigido por Bruna Gonçalves

Artigo revisto por Ana Janeiro

Fonte da imagem de destaque: Movie Review

AUTORIA

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Sou de Sintra, tenho 23 anos e, ao contrário de muitos clichês, nunca sonhei ser jornalista. Escolhi o curso no último dia de inscrições para o ensino superior, meios às cegas, e apaixonei-me pela ESCS desde o primeiro dia. Um belo de um amor à primeira vista, para os mais românticos. Hoje, tenho plena certeza de que o meu futuro passa pela comunicação, seja numa rádio ou numa redação. Na verdade, desde que tenha liberdade para explorar temas e dar asas à minha criatividade, sou feliz!