Leonel Neves, «o senhor das artes e dos ofícios»
Estamos numa quinta. O grande portão verde abre-se de forma quase automática, fazendo ecoar um som que se assemelha ao ranger dos dentes de uma criança. O espaço é amplo e frio, mas as paredes são preenchidas por pequenas prateleiras, encaixadas lado a lado, que suportam as imensas ferramentas. Ouve-se música clássica. No centro, a raiz de uma árvore transformada em escultura. Ao lado, um homem sentado numa cadeira de baloiço: é Leonel Neves, o artista da madeira, do ferro e da pedra.
De sorriso difícil e filosofia complexa, Leonel movimenta-se na estrutura de ferro que o próprio criou há meses. Apresenta-se como «o senhor das artes e dos ofícios». Com 59 anos de idade e dois filhos, Leonel não tem uma profissão, mas declara o seu amor à arte.
Começou a trabalhar com 12 anos como bate-chapas. Depois, foi varrer o chão de uma oficina de latoaria, de forma a ter a possibilidade de ver como era o ferro forjado. Trabalhou ainda numa serralharia, para ver como trabalhavam nas forjas, e nunca abandonou totalmente esta curiosidade e este lado criador que tão bem o caracteriza.
O avô era entalhador – quem faz as rosas da igreja, os mantos e os tetos trabalhados. Nasceu em 1872. Era um homem que lia imensos romances e que fazia guitarras e rodas para os carros que transportavam os animais. Faleceu quando Leonel tinha oito anos de idade, mas influenciou de forma determinante os gostos do neto.
Ainda assim, o criador não se considera um autodidata, pois foi aprendendo, ao longo da sua vida, a fazer este trabalho, tendo-se tornado escultor.
Mas de que esculturas estamos a falar? São quase cem peças de diversos materiais e de diferentes tamanhos – uma jiboia e um cristo com dois metros e sessenta centímetros feitos em madeira, uma concha e um rosto feitos em pedra, cadeiras e rosas feitas em ferro.
Na escola, aprendemos a ler e a escrever; o ritmo de leitura difere entre alunos e a caligrafia assemelha-se a uma impressão digital. Leonel revela que, na arte, a situação se mantém: «as ideias são de cada um. Partindo para uma tela, embora gostemos do traço de um artista, jamais conseguiremos ter um traço igual. Será igualmente belo, mas diferente. Todos somos diferentes e é importante entender isso».
Leonel esculpe imagens desde criança, o que se veio a revelar o comboio de fuga de uma corrida de vozes e desassossego. Mas a corrida sempre foi feita tendo em vista um destino: a liberdade. «Podem-nos rasgar a carne, o sangue e a alma, mas nunca as ideias; essas são profundas, vivem no sítio mais profundo de nós próprios. E, não conseguindo rasgar-nos essas ideias, atingimos o auge da nossa liberdade». A liberdade que o artista refere manifesta-se na arte e na possibilidade que temos de nela expressarmos o que está dentro de cada um de nós, sem quaisquer limites impostos.
Tal situação, na opinião de Leonel, não acontece na política: «as pessoas regem-se por determinadas regras e são formatadas para seguir as ordens de outra pessoa. Na arte é o oposto. O artista tem a facilidade e a espontaneidade. Por vezes, essa liberdade não se pode expressar, por determinadas condicionantes que a sociedade nos impõe, mas essa liberdade está sempre connosco».
Leonel guarda as suas peças em três locais: na sua casa, na garagem de sua casa e na garagem de uma quinta. Esta última funciona ainda como espaço de trabalho e de abstração de todo o ritmo acelerado em que, atualmente, as pessoas vivem.
Isolou-se na quinta há cerca de vinte anos, depois de ter fraturado a coluna com um salto mortal – que só não o foi porque «ainda há muita coisa para fazer».
Este homem – tão simples quanto introspetivo – esconde-se da multidão e tem medo de «mostrar ideias tão simples a este planeta desnorteado». De todas as peças, a «desilusão» é a que melhor representa o sentimento que nutre pela Humanidade.
Desde 2013, tem investido o seu tempo na construção de uma peça circular, feita com o tronco de uma árvore de um jardim de Belas. «A árvore estava colocada num ponto estratégico, onde os homens iam desapertar a braguilha». A árvore de dois mil quilogramas caiu e Leonel levou-a. Agora, apresenta semelhanças com as decorações que se colocam à porta de casa, na época natalícia, embora cem vezes maior. É quase uma coroa em madeira que pesa seiscentos quilogramas.
São muitos os elementos que se completam e com os quais nos cruzamos, no quotidiano que se apressa a interpelar-nos. O artista refere dois desses elementos: a arte e a ciência – que, sendo tão díspares, se completam. «Não conseguimos viver só em base tecnológica nem só em base artística».
Ninguém consegue transformar uma ideia, isso está dentro das pessoas que estão vocacionadas para determinada área. Por outro lado, a técnica consegue ensinar-se através de livros: «vai buscar-se um livro de mecânica e, através desse livro, vamos fazendo os pormenores todos que são descritos e construímos um motor. Ao construirmos esse motor, temos qualquer coisa em movimento. O próprio motor em si tem uma série de peças em movimento, logo, podemos fazer um avião, um carro, seja o que for».
Foi esta ideia e a ânsia de testar conhecimentos que levaram Leonel a construir um carro. Um carro do zero. Com um motor e num espaço amplo, digno da presença de um automóvel especial. O carro não existe, legalmente, mas existe, fisicamente. O pó tapa-lhe o rosto, mas o orgulho de Leonel é espelhado nas chapas negras.
Mas a arte pode aparecer na tecnologia. Aparece na parte estética: na cor dada aos bancos de jardim, na pintura das paredes de uma escola básica e nos ornamentos de um móvel de madeira maciça – que colocamos no sótão durante o verão, com os casacos de inverno e as camisolas de malha, que tanto espaço ocupam no guarda-fato do quarto.
Para Leonel, a arte não tem um significado concreto. A experiência de vida e a situação que estamos a viver, no momento em que observamos uma tela ou uma escultura, faz com que tenhamos uma diferente interpretação da peça.
Para além disso, é importante distinguir a escultura do desenho: «as cadeiras não são esculturas, são desenho e tecnologia; são arames dobrados e soldados, não há nada de ferro forjado, de movimento». Isto porque a arte jamais poderá ter utilidade. Tudo aquilo que apresenta algum tipo de utilidade, é considerado desenho e, como tal, tecnologia.
«Nunca entre em estado de ansiedade. O tempo está sempre a rodar, nós estamos sempre a mudar». Leonel insiste nesta ideia. A calma cobre-lhe o rosto, as palavras são ditas em tom pacífico, embora revelando alguma preocupação com o futuro – o meu e o dos jovens, não o dele.
«O homem nasceu para criar e para ajudar a natureza a criar tudo isto que está ao nosso redor. Mas o ser humano tem uma ambição desmedida e, ao invés de se preocupar com o que realmente importa, preocupa-se com a importância face ao outro. Uma coisa é ganhar importância pelo poder do conhecimento e outra é ganhá-la pela ambição». Leonel pede calma, implora respeito pela arte, pelas pessoas e pela natureza.
«Há sempre algo para descobrir: o frenético abanar das árvores, as ervas que se escondem entre as ruas, os carros que passam apressadamente, a luz que entra pela janela, o céu azul da primavera, as imagens que ficam, os flashes e tantas outras coisas; coisas simples».
Podemos tudo. Podemos porque é possível – Leonel mostra-nos isso. Leonel quis mostrar aos filhos que é possível criar e ser feliz a fazê-lo.
Hoje, o artista cria maçãs e romãs em madeira, que são engolidas por uma jiboia que segue o aroma a fruta doce; o artista esculpe a pedra e olha nos olhos das santas que oram pelo filho que seguiu ontem numa embarcação da marinha; o artista dobra o ferro e simula ondas do mar nas pétalas das rosas vermelhas. O artista, o criador, o génio sem idade e sem profissão, o «senhor das artes e dos ofícios» hoje, aqui, faz nascer obras e mostra a todos que não é preciso ter dinheiro para ser rico.