“Ma Rainey: A Mãe do Blues” – Meritocracia posta em causa
Ainda no ritmo dos Óscares, Ma Rainey: A Mãe do Blues é uma das maiores produções da Netflix neste último ano e propõe-se a dar umas pinceladas na vida de Ma Rainey, a Rainha-mãe do Blues mundial. Contudo, o filme que, aparentemente, seria apenas sobre música e a vida dos artistas dos anos 20 acaba por ser uma completa e profunda representação da vida e das dificuldades da comunidade negra no contexto em questão.
Inspirado numa peça de teatro de August Wilson – que leva o mesmo nome –, o filme original, dirigido por George C. Wolfe, é rico em diálogos, monólogos, cenas longas e vários outros atributos trazidos dos palcos. Entre eles, está também a menor quantidade de personagens e figurantes, o grande número de close-ups para efeito dramático e a linha espaço-tempo bem específica e concentrada.
Acerca deste último ponto, verifica-se que a maior parte do filme se passa num único dia, no qual Ma, interpretada por Viola Davis, e os músicos que a acompanham – Cutler (Colman Domingo), Toledo (Glynn Turman), Slow Drag (Michael Potts) e Levee (Chadwick Boseman) – têm de gravar um álbum inteiro da artista, num pequeno estúdio em Chicago.
O local é dividido em dois ambientes principais, nos quais se desenrolam os momentos de ensaio e de gravações. A comunicação entre ambos foi tão bem conseguida pelo roteirista que podemos ver a dinâmica das personagens tanto enquanto profissionais como quando interagem, através das suas personalidades contrastantes. Qualquer pequeno acontecimento no estúdio desenrola assuntos profundos e inesperados pelo espetador. Desde o abuso sexual até ao sentido da vida, ou religião, o grupo conversa e vai revelando diferentes camadas que permitem qualquer observador perceber a complexidade das pessoas retratadas.
Embora o guião de Ruben Santiago Hudson seja dinâmico, profundo e interessante, a quantidade de referências ao mundo teatral pode ser vista como uma debilidade. Não porque os diálogos, ou este tipo de comunicação, deixam de ser atrativos, mas porque quase não vemos marcas tanto do roteirista como de Wolfe. Isto é, embora os monólogos de Levee e de Ma Rainey sejam indispensáveis, não funcionam no ecrã da mesma forma que funcionam em palco. Falta, no filme, aquele ar de adaptação cinematográfica, ou seja, caso o objetivo fosse criar apenas uma cópia do teatro, o caminho seria realizá-lo como Hamilton. Para aqueles acostumados com a linguagem do teatro, estes fatores não serão de grande incómodo, mas compreende-se a insatisfação da academia com o projeto, quando, por exemplo, não o colocou em nenhuma das principais categorias da noite.
Isto, porém, não apagou a força da produção, como indica a vitória dos atores em grandes premiações como os Bafta e os SAG Awards. Num filme tão curto – especialmente para uma produção de grande qualidade (94 minutos) – é incrível a capacidade do roteiro para desenvolver pontos tão específicos. Até mesmo aqueles que caracterizam as personagens secundárias. Vemos a insegurança do sobrinho de Ma, Sylvester (Dusan Brown), mas também a sua insatisfação com algumas das atitudes da tia; a fome por dinheiro de Dussie Mae (Taylour Paige), a “menina de Ma”, como as outras personagens a chamam; o caráter exploratório de Irvin (Jeremy Shamos), o agente musical da Rainha do Blues; e o trio de musicistas – Cutler, Toledo e Slow Drag –, que trabalham juntos há anos e aparentam ser inseparáveis, formando uma muralha defensora do Blues clássico e revelando uma sabedoria construída após anos de sobrevivência ao racismo, algo que carece no jovem e insolente Levee.
Viola Davis (Ma Rainey) e Chadwick Boseman (Levee), ao tomarem o lugar das duas personagens principais, são os grandes responsáveis por transformar esta ideia num sucesso. As atuações mostram-se fenomenais, contando com o melhor trabalho de toda a carreira de Boseman – deixando um belo legado póstumo – e Davis, que está quase irreconhecível. Admito que o belo trabalho de maquilhagem e figurino, do qual dispôs, foi de tamanho auxílio que não pude acreditar nos meus olhos: “Esta não pode ser a Viola!”.
A atriz atingiu um marco importantíssimo, com um filme que não poderia ser mais adequado para tal: Viola Davis conquistou, este ano, a posição histórica como a mulher negra com mais nomeações para os Óscares.
E, como grandes atuações não nascem sozinhas, o roteiro é quase irrepreensível neste âmbito. A construção das personagens é muito bem conseguida, não apenas através dos diálogos, mas também em cada uma das pequenas ações introduzidas ao longo da trama. Utilizemos o exemplo de Levee. Logo na primeira cena – em que assistimos a um show de Ma -, o trompetista faz de tudo para se exibir ao público, tentando constantemente chamar a atenção, ainda que as suas atitudes venham ao encontro do desejo da sua chefe. Aqui, vemos o seu caráter vaidoso e orgulhoso que é ainda mais reforçado pelo facto de gastar uma semana inteira de salário num par de sapatos, o que traz à tona a pobre infância do músico, os seus traumas e os seus sonhos. Na mesma cena inicial, vemos, através da insatisfação de Ma com o músico exibicionista, a relação atribulada que os dois irão desenvolver ao longo do filme. Esta é apimentada quer pelo desejo de Levee em ser um músico independente e reconhecido, quer pela necessidade da Rainha do Blues de manter tudo sob o seu controlo e direção. E o mais interessante acerca deste desenvolvimento acima exposto é que o roteiro irá evoluir ao longo da trama, até ao ponto em que entendemos o caráter disfuncional de ambos e o compreendemos.
Ma, como uma mulher cheia de temperamento e vontades, pode parecer insuportável para muitos, no início. A forma desrespeitosa e soberba com que lida com aqueles ao seu redor, principalmente com o seu agente, Irvin, e o dono do estúdio de gravação, Sturdyvant (Jonny Coyne), ou o seu caráter possessivo, quando se trata de Dussie Mae, formam o quadro de uma sobrevivente. Porém, no fundo – por trás da diva – vemos a sua Humanidade: não abre mão do desejo de ver o sobrinho a participar no álbum, ainda que a sua gagueira dificulte a gravação; tem dificuldades em dar os direitos do CD, com medo de ser explorada e usada novamente; apega-se a pequenas manias, para ter certeza de que ainda tem tudo sob controlo.
Ao longo das conversas e de alguns desabafos, a Rainha do Blues revela-se como uma pessoa cheia de feridas. Ma é como um animal magocado que ataca para se proteger e, ao mesmo tempo, faz de tudo para assegurar que os seus recebem o que ela não conseguiu. Ela sabe o quão difícil a vida pode ser para qualquer pessoa que tenha a sua cor de pele nos Estados Unidos. Assim, ela faz de tudo para manter a situação em mãos seguras, longe dos empresários brancos que tantas vezes a exploraram, como ela mesma narra.
Análise Final (com spoilers)
Numa lógica semelhante, Levee aparenta ser uma pessoa mesquinha. Sonhos grandes demais para a própria cabeça e uma força de vontade e rebeldia dignas de um adolescente. Todavia, descobrimos que o jovem trompetista nunca teve sequer a chance de ser uma criança. A sua infância difícil foi marcada por uma série de episódios desleais e racistas que destruíram a sua base familiar. O emocional frágil é fruto de uma amargura que o persegue. Tenta seguir em frente enquanto finge, alienadamente, que dispõem das mesmas possibilidades que qualquer outro cidadão estadunidense. A trajetória de Levee, no filme, é o maior simbolismo de como o racismo estrutural fundado nos Estados Unidos é tão poderoso que, muitas vezes, nem mesmo a força de vontade nos consegue ajudar a fugir dos nossos demónios.
As metáforas do filme ajudam-nos ainda mais a visualizarmos este sistema tão corrompido. Levee passa o dia todo a tentar abrir uma porta que fica na sala de ensaios, tentando também convencer o senhor Sturdyvant a deixá-lo gravar algumas músicas no estúdio, de maneira independente, assim como o prometera. Eventualmente, no fim do filme, nós não só vemos que aquela porta não vai dar a lado nenhum (literalmente), como o dono da gravadora descumpre a sua palavra e, por um preço injusto, compra as músicas de Levee, aproveitando-se do seu maravilhoso talento.
A cena de finalização conclui este enredo, com a apresentação do grupo para o qual as músicas de Levee foram: um grupo de homens brancos que juram ser capazes de revolucionar o Blues, assim como o compositor.
O filme termina de forma excecional, com um retrato pleno da desvantagem existente no ocidente e na própria indústria musical. A trama é um espelho de uma sociedade de valores invertidos, na qual o talento não é o que mais importa num artista e as pessoas são condicionadas pelo tom da sua pele. Destruindo a mentalidade meritocrática, Ma Rainey: A Mãe do Blues traz ao público a complexidade humana, as condicionantes impostas no meio em que somos criados e as problemáticas bem atuais de uma forma surpreendente.
Se temos passados distintos, como poderemos alcançar os mesmos futuros? Até que ponto o ser humano está livre das suas raízes e da sua história para procurar algo melhor? O que pode ser conquistado apenas por mérito?
Artigo redigido por Amanda Silva
Artigo revisto por Beatriz Campos
Fonte da imagem de destaque: Fantastic TV
AUTORIA
A curiosidade e o questionamento são naturais desde que se lembra. Da História até às artes, sempre tomou gosto por se informar e por compartilhar com outros as suas descobertas. Assim, ao mesmo tempo que o conhecimento e a comunicação surgiam como um estilo de vida, os caminhos jornalísticos e pelo mundo da comunicação social se apresentavam como os melhores a se trilhar.