O Movimento Rastafari pelas palavras de quem o vive
Entrei em contacto com o movimento Rastafari através do reggae. A partir daí, cativou a minha atenção e despertou a minha curiosidade. Talvez muitos pensem que não tem nada que ver comigo, porque, para todos os efeitos, não faz parte da minha “herança”… Mas nunca se sentiram tão ligados a algo que não conseguem explicar o porquê? Nunca sentiram tanta admiração por algo que só querem aprofundar esse conhecimento? E será que tem que ver somente com herança e cultura ou será algo mais ideológico? Sendo este movimento social e religioso, há algo que nos liga de forma quase espontânea às suas crenças e ideias.
Estranhando o facto de sentir conexão com algo tão distante, procurei conhecer mais e fui fazer a minha pesquisa – talvez, à procura de respostas para as mil e uma questões que ecoavam na minha cabeça.
Origem da criação de dreads e Apropriação cultural
As dreads em si vêm da Grécia Antiga até ao Egito, tendo, como primeiros retratos, imagens da deusa hindu Shiva. Sim, é verdade, ao contrário daquilo que muita gente pensa, não foi na Jamaica que o conceito surgiu. As comunidades rastafaris da Jamaica acabaram apenas por, posteriormente, o adaptar. Será apropriação cultural se uma pessoa de pele “branca” usar o termo dreads? Por que razão as pessoas complicam tanto um movimento que deveria ser de aceitação? Bob Marley uma vez disse: “O meu pai é branco e a minha mãe é negra. Sabe, eles chamam-me mestiço, ou seja, o que for. Bem, eu não fico do lado de ninguém. Eu não fico do lado dos negros nem do lado dos brancos. Eu estou do lado de Deus.” A partir do momento em que li este excerto, percebi que o mundo nos tenta dividir de uma forma demasiado tóxica – ignorando o facto de que unidos somos (muito) mais fortes. Estamos a falar de um movimento que representa, essencialmente, amor – sem olhar a cores, passados ou escolhas.
Valores
É um movimento que procura expressar a ideia de “mais compaixão e menos ódio”, promover a fraternidade e combater o individualismo exagerado. No entanto, não nos podemos esquecer de que carrega, também, uma grande responsabilidade – uma vez que está a ser a cara de uma ideologia. Assim, não nos podemos considerar parte de algo sem a prévia noção daquilo que representa e de todo o processo adjacente. Independentemente de tudo, o objetivo será sempre trabalhar em prol de atingir o estado de espírito que um verdadeiro rasta tem. Tenho, também, a noção de que muita gente apenas adquire essa paz de espírito após a entrada no movimento – através de ferramentas que permitem o controlo do corpo e da mente e de todos os cuidados para uma vida mais plena. No entanto, se uma pessoa entra de cabeça, pode incorrer em erros que comprometem as suas crenças.
Bem, os valores que promovem não são difíceis de entender. São valores humanos bastante simples como o amor, a paz, a simplicidade e a compaixão. Os rastas são pessoas que procuram elevar-se sem deixar que a complexidade do mundo os desvie do seu caminho e objetivo de estar conectado com Jah (Deus – imperador Haile Selassie). De mãos dadas consigo mesmos, numa profunda ligação com a sua essência, procuram viver de forma simples, enquanto vivem por si e pelos outros. Para além disso, o que mais me fascina acerca deste movimento é, acima de tudo, a sua luta contra a discriminação, a opressão e o capitalismo. Não é, de todo, um estilo de vida despreocupado, como muitas pessoas pensam. Aliás, quem se rege por este estilo de vida aprende a lidar com os problemas sem que isso afete diretamente a sua felicidade. Por exemplos, estão bastante atentos à discriminação, mas não se consideram infelizes ou deixam que isso os torne pessoas rancorosas contra o sistema. Há quem diga que é o movimento dos “pobres”, porque não acreditam na estratificação social e optam por estilos de vida mais humildes. Não obstante, também é um movimento contra a opressão racial e o colonialismo – numa luta pela liberdade e identidade.
É importante perceber que qualquer pessoa que decida aderir de corpo e alma a este movimento tem de ter noção de que vai fazer automaticamente parte de uma minoria, de que vai ser “mais um excluído” e de que vai tomar uma posição. A sociedade tende a julgar quem foge aos padrões, daí ser importante uma pesquisa e preparação prévias. Quando tomam esta decisão, escolhem ver pureza e ter certos princípios, deixando a superficialidade de lado – procuram uma vida significativa para inspirar mudanças reais.
A natureza possui um papel fundamental para qualquer rasta. É, aos seus olhos, um portal para ouvir o que a sua alma pede e herdar assim o conhecimento do mundo – essa conexão é o objetivo de vida que procuram alcançar. Deste modo, não podemos ignorar o facto de que comer bem e ter uma alimentação com base em produtos biológicos é a chave. Muitos são veganos, porque acreditam em preservar a vida e consideram que uma alimentação vegan faz com que a mente se modifique de forma positiva, criando pensamentos mais saudáveis e dando, assim, “gasóleo” à mente.
Vivem em paz?
Na verdade, os rastafaris não vivem em paz na Jamaica, porque a própria polícia os discrimina e persegue por viverem de forma diferente, recorrendo, muitas vezes, à desculpa da marijuana para o fazer. A verdade é que tudo o que é diferente assusta, mas isso, por si só, nunca será razão suficiente para ridicularizar a sua liberdade e a sua vida. Para além disso, há sempre os típicos preconceitos acerca deles. Como por exemplo: todos os rastafaris fumam marijuana. Não é, de todo, verdade, sendo que cada um é livre de (não) o fazer. Há testemunhos de que muitos optam por não consumir por razões pessoais e que a restante comunidade deve respeitar. Muitos acreditam na disciplina mental, o que significa ter controlo total sobre o seu corpo sem outras substâncias.
Reggae
Ah! Não podemos falar do movimento rastafari sem falar do reggae – um estilo musical que, no fim do dia, serve como meio de comunicação para transmitir a sua ideologia. Um veículo de tal forma eficaz que o movimento já não se restringe à Jamaica. E, afinal, quem é que não conhece o Bob Marley? Pelo menos, as pessoas sabem quem é este cantor de reggae, mesmo sem a mínima noção da origem deste estilo musical.
Vozes do movimento
Não quero que os leitores entendam somente o conceito do movimento. Quero que, acima de tudo, sintam o que ele representa. E, por isso, trago-vos, para além do meu, o testemunho de quatro pessoas que fazem parte do movimento.
Vivemos as nossas vidas de uma forma que consideramos controlada por nós, enquanto, no fundo, nos deixamos, inconscientemente, levar pelos valores do meio que nos rodeia. Quantos tiram cursos de que realmente gostam? Quantos arriscam deixar de lado os seus padrões? Quando comecei a pesquisar e observei o estilo de vida que os rastas levam, fiquei impressionada, porque, de facto, não são pessoas sem ambição ou objetivos. São, aliás, pessoas que lutam pelos seus (humildes) objetivos e que refletem sobre as consequências dos seus atos na sociedade.
Não digo que seja em todo o lado, mas na primeira vez que fiz faux locs (falsos dreads) senti-me, em certos locais, desconfortável e nem eram dreads verdadeiros. Até porque as pessoas têm a tendência de associar este tipo de cabelo à ideia de consumo de drogas, despreocupação perante o mundo e pobreza (mal sabem da riqueza espiritual do movimento). Esse sentimento foi geral a todos. O “Black Meduza”, uma das pessoas com quem falei, admitiu que as pessoas o discriminam imenso, tendo já a experiência de vários anos. Quando andava na escola, sentiu-se ofendido pelo facto de os colegas perguntarem “como lavas as rastas?”, ao que respondeu “eu lavo a rasta normal como tu lavas o teu cabelo: a única diferença é que está enrolado”, entre outras perguntas cuja intencionalidade não era curiosidade, mas crítica que ele entendia pelo tom de voz ou atitude de gozo. No autocarro, já nem se sentavam ao lado dele, sendo difícil criar uma certa conexão com as pessoas. Para além disso, quando lhe pediram para cortar o cabelo para ter a oportunidade de frequentar um curso sentiu-se confuso, pois “a esperteza não está no meu cabelo nem na minha aparência”. Sendo assim, nem frequentou aquele curso, procurou outro, pois sentiu-se um excluído e julgado num local onde apenas queria lutar por uma melhor educação. No entanto, diz que as coisas estão a mudar e que as pessoas já entendem melhor, mas que ainda temos um longo processo pela frente.
Mas se os rastas entenderem a história e associarem o seu estilo de vida ao movimento, vão, de facto, encontrar-se (mais) em paz com o mundo, porque nos ensina a amar-nos, da forma mais real que somos, sem padrões de beleza. Assim, esse preconceito da sociedade acaba por se tornar mais leve. A Vanessa Pereira, natural de Cabo Verde, que se mudou para a Suíça depois de viver em Portugal durante algum tempo, contou uma parte da sua história. Apesar dos preconceitos de que foi alvo por causa dos dreads, quando os usa, sente-se simples e bonita. Aliás, no seu caso, acaba por ter um significado ainda mais especial, sendo que chegou a ter uma (dread) que o seu namorado cortou para adicionar ao seu cabelo, numa homenagem ao amor que sentem um pelo outro.
Não nego que recebi bastantes elogios e que foi o cabelo com que mais me conectei, porque me deu mais confiança e poder. No entanto, estar na rua e estarem constantemente a perguntar se quero comprar drogas ou a convidar-me para ir fumar acaba por refletir a ignorância das pessoas face a este tópico. A Jéssica (Porto, Portugal), uma das raparigas com quem falei, começou em 2017 a dançar dancehall (afrojamaicano) e foi aí que começou a entrar em contacto com este mundo. Já tem dreads há cerca de 3 anos e, antes de o fazer, teve o cuidado de se informar. Está a par do movimento, da sua história e de tudo o que representa. Já ouviu alguns comentários desagradáveis e acredita que seja por causa dos estereótipos sociais que ainda existem.
Na altura, a minha mãe perguntou-me o porquê de eu querer fazer (eventualmente) as verdadeiras, porque simplesmente não entendia e porque considerou que não fazia parte da minha cultura. Então, quando fiz só uma, para começar essa jornada que queria fazer de forma lenta, expliquei-lhe que o poder que tinha era uma representação da minha personalidade. Era a minha forma de protesto perante um mundo capitalista, era a minha maneira de dizer “eu tenho uma voz, eu acredito nisto e vocês conseguem ver isso no meu cabelo”. Mas porquê só uma? Bem, primeiro para experimentar e porque não me considerava espiritualmente responsável para assumir aquela carga. Quando o assumisse por completo, queria que fosse um compromisso para a vida, assim como a “Tinha Faray”, natural do Cabo Verde, que explicou que sente uma grande conexão com o seu cabelo e que, se depender de si, nunca irá cortar. Eu também não quero que seja algo temporário para depois rapar, mas uma jornada que demonstrasse que por cada dread havia ali uma conquista, por cada dread um avanço no meu amor próprio.
Queria deixar uma mensagem final, da autoria de Bob Marley: “O rastafari é um revolucionário. Não se intimida, não aceita ser comprado”.
Espero que vos tenha despertado vontade de conhecer mais e que tenham entendido um pouco do que o movimento rastafari representa. Não se esqueçam de amar, transmitam boas energias para toda a gente que vos rodeia e aprendam a apreciar o mundo incrível em que vivemos (ah! E não se esqueçam da natureza)!
Artigo revisto por Bruna Gonçalves
Fonte da foto de capa: Pinterest
AUTORIA
Patrícia tem 19 anos e veio do Norte. Criada numa aldeia, desenvolveu um amor pela natureza e animais. Estuda Publicidade e Marketing e pretende trabalhar junto de organizações humanitárias. Mudou-se para Lisboa, mas nunca se esquece do seu Porto. Adora dançar, ler e ouvir clássicos de música. Sempre que pode, anda pelas ruas pronta para explorar algo novo e tirar fotos a cada detalhe artístico.
Gostei bastante do artigo e do que foi escrito.
Como branca que usa
Dreads ha dez anos fui capaz de me rever e de ver expresso um pouco daquilo que sinto e sempre pensei. Quanto ao comentário acima 👆 é fácil falar palavras caras quando não se vive tal realidade. Seja o de ser negra, ou o de usar dreads! Anti racista?!ahahah eu poderia descrever o seu comentário numa palavra : segregação! A sua maneira de pensar sim é preocupante. Para todos aqueles que querem avançar em prol do combate a uma sociedade estruturalmente racista e segregadora! Rasta is All over the world como me disse um velho amoroso rastafary na Jamaica. Aceita que dói menos .
Olá, li com atenção o artigo e escapa-me uma coisa. Refere-se a origem das rastas, manifestação externa e estética associada a várias comunidades e religiões, com diferentes significados. E em nenhum momento se fala da coisa mais simples mas absolutamente essencial: o movimento Rastafari nasceu na Etiópia, as rastas são símbolo da devoção religiosa a Jah, Selassie. Apontam-se as dreads como originárias da Grécia (???!). As dreads não são nenhuma manifestação exclusiva ou única e têm vários significados sociais, religiosos ou filósoficos. Para não falar do óbvio- na pré história, Por razões óbvias. Mas também fazem parte da cultura azteca, no perú, na religião hindu os seguidores de shiva, no senegal, enfim. Não há nenhuma origem geográfica mas filosófica ou religiosa. Na Grécia como em outros países, qualquer asceta teria rastas por não mudarem aquilo que para eles era criação de Deus – o ser humano- logo o cabelo era intocável. Além dos muitos equívocos sobre os princípios religiosos. A questão da cannabis não é uma filosofia, uma obrigatoriedade ou requisito rastafari. É a consequência natural das regras base: não fumar, não beber, medicação apenas de origem natural. Evidentemente fuma cannabis quem quer.
Concluindo, a origem das dreads no contexto rastafari é um princípio religioso e não geográfico. Sendo certo que o movimento rastafari nasce na Etiópia (não na Jamaica nem na Grécia). Tornou-se conhecido e desenvolveu-se na Jamaica. A redução das dreads ao movimento rastafari é profundamente errada. Além de, como a história prova, estar ligada a vários povos e religiões, dita a liberdade que ser uma questão estética de alguém que ouve reggae e gosta sem se identificar com o rastafari, é em si mesmo a manifestação da sua liberdade individual. A existir apropriação ela existe quando se afirma que as dreads são manifestação exclusiva do rastafari (que recusam o termo Rastafarianismo, já agora). E quanto aos princípios- outra – a base é o reconhecimento da negritude, o afrocentrismo, a recusa das representações europeias quer de Jesus, quer das pessoas racializadas sobretudo e principalmente as afrodescendentes mas também as comunidades latino-americanas creoulas. Por isso, um europeu, na sua maioria brancos, podem até concordar com o rastafari mas evidentemente não podem professar essa religião porque ela é identitária. Além do mais baseia-se na opressão do europeu branco, o colonizador e o oprimido. Nunca um branco, ainda que use dreads pode ser rastafari pela mesma razão que não existe racismo “invertido”. E por fim, há várias correntes rastafari mas nenhuma delas tem por base “o amor” muito menos “sem olhar a cores”. A raça, como escreveu Fanon, é uma criação do homem branco. No contexto do sistema capitalista criando mais um factor específico de exploração e discriminação. E negar a identidade, as características específicas, a condição social e dizer que “unidos independentemente da cor” é negar que existe racismo sistémico, é, no fundo, a reprodução do racismo sistémico. Ser Rastafari não é ter dreads e espalhar o amor, Isso é a expressão artística concreta de Bob Marley e do reggae. Bruna, investigaste, dizes-te Rastafari e falas dos olhos de quem o pratica. Como é possível ignorares é mesmo contradizeres o que é a questão central dessa mesma religião e dizeres o que dizes sobre essa mesma religião? Não estou a fazer este comentário para ofender ou apoucar. Faço-o porque na minha ignorância e nuns sapatos que nunca calçarei por mais solidária e defensora do antirracismo- sou branca – nunca falarei em nome de mas ao lado de. E tantos casos defendi em tribunal assumindo com orgulho que rejeito o racismo sistémico e que a justiça é racista e tento assim dar o meu contributo porque exerço a profissão consciente que a justiça é de classe e eu escolhi um lado e é ao serviço dele que coloco o meu conhecimento- leio isto. Que são mais 100 passos atrás na luta antirracista. Por favor lê mais sobre a religião Rastafari e peço-te que se puderes incluas nas tuas leituras Franz Fanon, James Baldwin, Stokely Carmichael, Fred Hampton, Ângela Davis. Começa por José Tenorio que não é tão denso, tão hermético como alguns destes e por favor não reproduzas acriticamente a cultura dominante. Este texto é o reflexo de quem vive a percepção europeia e branca, a da burguesia, do Rastafari e a aceita e reproduz acriticamente, rejeitando a identidade negra. Ainda por cima partindo da atribuição a si mesma do lugar de fala. Quem não tem consciência de classe – e consequentemente do racismo – o seu lugar de fala é o da ideologia dominante, o do opressor. O que este texto “explica” é a visão europeia e a definição europeia do Rastafari. Ou seja – a apropriação da identidade e revisionismo para ir de encontro ao capitalismo. Foi isto que acabaste de fazer. É muito importante ler, estudar e nunca se ter certezas absolutas e “explicar”. Este texto deixou-me muito preocupada e espero que entendas este comentário como um contributo.