Grande Entrevista

“Os avanços que este Governo tem feito são insuficientes”

São já 69 anos de idade e 42 de carreira política. De rosto marcado e mãos calejadas, o homem que “não teve tempo para ser menino” mostra as cartas do jogo político de um partido que tem fama de ser fechado. Depois de uma primeira parte focada no lado pessoal, eis a visão política da atualidade sob os olhos de Jerónimo de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português. Da “geringonça”, passando pela eutanásia, até às propinas. Tudo aos ouvidos da ESCS MAGAZINE, na segunda parte desta Grande Entrevista.

O início da carreira política de Jerónimo de Sousa, na Assembleia Constituinte | SÁBADO
Passou quase um ano e cinco meses desde os acordos assinados entre PS, PCP e BE, naquele a que chamou de um “Governo minoritário do PS”. Considera este acordo o ponto alto do PCP desde os tempos da Revolução de 1974?
Não, porque não há qualquer comparação com esse processo fascinante e transformador que foi a Revolução de abril. Não é comparável. Esta nova fase da política nacional e a solução política encontrada resultou de uma conjuntura muito concreta: as eleições de 4 de outubro criaram uma nova situação; havia uma nova maioria e uma nova relação de forças na Assembleia da República, em que os partidos de direita ficaram em minoria. A isso junta-se o facto de que a maioria da população queria ver o Governo PSD/CDS pelas costas, porque o nosso povo foi profundamente fustigado sob esse Governo, com as injustiças, a desigualdade e o empobrecimento a aumentarem. Por isso, do nosso ponto de vista, e tendo em conta essa nova relação de forças na Assembleia, avançámos com a ideia e o PS só não formaria Governo se não quisesse. Se bem que eu até acho que o próprio Partido Socialista não estava muito convencido com a ideia ao início…

E o que terá levado então os socialistas a mudarem de ideias?
A partir da ação do PCP, com certeza que o PS ficou desperto para esta nova situação. Encetou-se um processo de diálogo, que resultou na tal posição conjunta que referimos. Uma posição conjunta que, pelo seu conteúdo, define o grau de compromisso entre o PS e o PCP. Logo, não existe um Governo de esquerda, nem um Governo de maioria de esquerda, nem um Governo de dissidência parlamentar. O que existe é um Governo minoritário do PS, que tem uma posição conjunta que no essencial procura dar resposta a questões mais urgentes que afetam os trabalhadores e o povo. E esses conteúdos – a reposição de rendimentos, de direitos, o combate ao processo de destruição e privatização do nosso aparelho produtivo, como na saúde ou na educação – têm permitido esses avanços. A grande questão é que, do nosso ponto de vista, são avanços limitados e insuficientes, tendo em conta a situação nacional e da nossa economia e tendo em conta a nossa dependência externa, particularmente das imposições da União Europeia. E, na nossa perspetiva, essas imposições limitam o nosso desenvolvimento e o nosso crescimento económico.

Com António Costa, secretário-geral do PS, no momento da assinatura do acordo de posição conjunta, em Novembro de 2015 | RENASCENÇA/SAPO
Aproveitando essa ideia de limitação: a imprensa noticiou este mês que 2016 foi o ano com menos leis promulgadas desde 1976. Será um sinal da dificuldade de entendimento entre os três partidos?
Há um elemento determinante, que é o facto de nesta posição conjunta ser garantida e respeitada a independência e autonomia de cada partido. Nós tínhamos a consciência de que o PS não se libertaria dos constrangimentos e das imposições da União Europeia, nem mesmo, digamos, de grandes questões que nos condicionam perante o capital monopolista. Enfim, em termos de política europeia, nós temos problemas de fundo. Bem podemos assobiar para o lado como se não existissem, mas não vale a pena. O nível da dívida, por exemplo, é um sufoco brutal. É de relembrar que temos das maiores dívidas do mundo e que devido a isso temos de arranjar, por ano, oito mil milhões de euros! E isso só para pagar os juros da dívida, não para saldar a dívida em si! Obviamente que essa dependência do capital monopolista se reflete depois na legislação laboral, nos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores. E é aqui que o PS se move demasiadamente devagar, mantendo assim algumas situações de injustiça em alguns setores, o que é um pouco contraditório. É verdade que o afastamento do Governo anterior foi importante, porque os portugueses respiraram de alivio e conseguiram-se avanços que nós valorizamos muito – no plano dos salários, das pensões, da saúde –, mas nós consideramos que o país tem de crescer e tem de se desenvolver para garantir mais emprego e criar mais riqueza, e é aqui que bate o ponto e há uma contradição latente. O grande problema é se um dia essa contradição se torna insanável…

Acredita que isso pode acontecer?

Sim, pode acontecer, naturalmente. Se não se der resposta a esses problemas, essa nossa dependência, que chegou ao ponto de qualquer agência de rating decidir se somos “lixo” ou não, e as imposições que vêm da UE em relação a políticas económicas, que aliás têm expressão naquela linguagem de carroceiro do Presidente do Euro Grupo que demonstra, digamos, a conceção dos que “mandam” e dos que olham para nós como lixo e como cidadãos europeus de segunda, vai confrontar o país e os portugueses com a necessidade de responder. E responder para bem do nosso país e do futuro das novas gerações. Se não dermos resposta, por exemplo, à questão da divida, o problema vai se acumulando. Como é que se resolve? Tem que haver, designadamente, um processo de renegociação da dívida. Como é que se admite que um Estado, mesmo como devedor, não tenha o direito de procurar, junto dos credores, uma renegociação dessa dívida?

A saída do euro seria uma solução?
Bom, essa é uma questão que está na ordem do dia. Quando o PCP, aqui há vinte anos, alertava para os perigos de uma precipitada entrada no euro, fazia esse alerta com base numa realidade muito concreta: como é que com economias tão diferenciadas, com países com graus de desenvolvimento económico tão diferenciados e com realidades culturais tão diferentes se poderia ter uma moeda única? Se fizermos uma consulta à variação económica desde que adotámos o euro, verifica-se uma economia rastejante. Precisávamos de crescer no mínimo 3% por ano e isso não está a acontecer. Ao mesmo tempo, alguns países beneficiaram com a política do euro, como é o caso da Alemanha. Por isso acho legítimo que nos questionássemos e nos preparássemos quanto a essa possibilidade, ainda que o PCP não defenda uma posição aventureira nessa matéria. Temos que nos preparar, sim, para nos libertarmos dessa submissão do euro, num processo que deveria ser dirigido pelo Estado. E, para além disto, há ainda uma outra dimensão: é que estamos a falar da preparação de uma saída de Portugal do euro, por decisão nossa, mas não estamos livres de sermos expulsos por outros, em condições dramáticas. E, portanto, nós pensamos que é preciso um grande debate, com grande franqueza, e considerar que isto não pode ser tabu. Há que olhar para a realidade da nossa economia e para as nossas capacidades. Continuamos a considerar que o país tem recursos e possibilidades imensas, podíamos não as ter e estarmos aqui num sonho, mas o país tem riquezas imensas em termos de recursos, para além da riqueza maior que é o seu próprio povo. Por isso recusamos a ideia de que isto é uma discussão tabu.

Pegando nas polémicas declarações de Jeroen Dijsselbloem, presidente do Euro Grupo: geralmente os estrangeiros elogiam imenso os nossos trabalhadores emigrantes, dizendo que são esforçados e produtivos. Pelo contrário, criticam regularmente os trabalhadores portugueses empregados cá, dizendo que são preguiçosos e pouco dados ao trabalho. Como explica esta contradição?
Bem, a produção é a mesma, o grau de capacidade não se altera. E mesmo a declaração do Sr. Dijsselbloem não seria grande problema se fosse apenas uma cabeça a pensar desta forma. Mas o problema é que não é, são muitas cabeças a pensarem desta maneira! E muitas delas são as cabeças dos grandes mandantes da UE. E a verdade é que nem eles conseguem explicar essa contradição, porque os portugueses demonstraram sempre, ao longo da sua história, terem uma capacidade e uma criatividade imbatíveis. Mas o grande problema é essa sobranceria e essa arrogância imperial que determina hoje os círculos de decisão da UE. Esqueceram, por exemplo, aquilo que os portugueses têm passado nos últimos anos. Ainda agora veio um relatório da ONU, um relatório suspeito, onde se demonstra que os ricos ficaram mais ricos e os pobres ficaram mais pobres. E isto é irrefutável! Dentro desta pobreza estão muitos trabalhadores que trabalham muito, mas que ganham um salário que não chega para sair do risco de pobreza. Mesmo apesar de os trabalhadores portugueses serem tão capazes como qualquer trabalhador de outro país.

Um dos temas quentes da atualidade é a questão da eutanásia. Qual é a posição do PCP quanto a isto?

Não temos ainda nenhuma posição fechada. Tendo em conta a sensibilidade da questão, eu acho que o maior erro que poderíamos cometer era tomar decisões precipitadas ou considerar que esta é uma guerra entre médicos e juristas e entre quem tem opção religiosa e quem não tem… isso inquinaria o debate. E como em todas as matérias sensíveis, como é a questão da eutanásia, acho que a sociedade só beneficiará com uma ampla discussão sem dramatizações das opiniões, para que se forme realmente uma opinião clara do assunto. Não esquecer que este é um tema pouco consensual na sociedade portuguesa! Mesmo dentro dos partidos políticos nem todos os membros pensam da mesma maneira, por exemplo. Por isso há que aprofundar o debate e não transformar isto num ato súbito, que provocaria grandes problemas de opinião.

Acha que até agora esse debate tem sido bem fomentado?
Houve manifestações que aumentaram as minhas preocupações, porque foram atos de dramatização e de conflitualidade numa matéria em que ninguém pode ser dono da verdade absoluta. E por isso a nossa proposta é o fomento do debate e que depois se decida, procurando não abrir feridas e sequelas numa matéria que, como digo, é fraturante. Afinal de contas estamos a falar de um direito fundamental, é necessário não dramatizar. Participemos!

Um relatório da UE de 2015 refere que Portugal tem das propinas mais caras da Europa, apenas superado pelo Reino Unido e pela Escócia. Ao mesmo tempo, Portugal e Holanda são os únicos países da UE em que todos os alunos pagam propinas. Qual a sua opinião e qual a perspetiva do PCP sobre este cenário?
Há décadas que temos lutado pela abolição completa das propinas. E, em conformidade com a Constituição, defendemos a gratuidade do ensino e dos seus diversos níveis. Foi tomada uma medida por este Governo para o congelamento das propinas, medida essa que nós achamos claramente insuficiente. Deveria haver um processo de redução significativa com vista à sua própria abolição. Porque esta questão do valor das propinas levanta o velho problema com que começámos esta entrevista: o filho do operário tem de ser operário e o filho do doutor tem de ser doutor. Não pode ser! A capacidade económica não pode determinar a evolução de um aluno e se ele faz um curso ou uma licenciatura. Se não for assim viola-se o principio da igualdade.

E como é que uma abolição completa das propinas seria sustentável para o Estado e para as universidades?
Tudo tem a ver com opções políticas. Ninguém fica escandalizado quando se dá milhares de milhões de euros para tapar os desmames dos banqueiros e da banca. Os acasulados defensores da manutenção das propinas elevadas são os mesmos que silenciam esta contradição. Naturalmente que precisamos de desenvolver a nossa economia, criar mais riqueza e distribuí-la melhor, isto é uma questão básica em que estamos todos de acordo. Mas quando se fala de soluções, obviamente que uma delas passaria pela renegociação da dívida. Há que procurar uma moratória e encontrar aí dinheiro disponível para dar resposta a problemas sociais gritantes como este. Continuo a considerar que o problema não é a questão de haver ou não haver dinheiro. Há dinheiro! Ele está é mal distribuído. E, portanto, nós consideramos que o desenvolvimento económico e essa renegociação poderiam ser as respostas para que o direito ao ensino superior, entre outros direitos, fosse um direito para todos e não apenas para aqueles que têm dinheiro. Porque senão voltamos àquilo que existia na minha zona – a terra dos “homens que não tiveram tempo para serem meninos”.