Os números também mentem
Sou um consumidor ávido de estatísticas. Costumo consultar gráficos que não têm o mínimo interesse para mais ninguém. O meu hemisfério produtor também me leva a fazer listas e tops sobre todo e qualquer assunto que possam imaginar. Dá-me prazer fazer inventários. Já se adivinha, no entanto, que nunca cumpro nada do que escrevo. As listagens que faço servem para me ocupar a cabeça e para pouco ou nada mais. Apesar disto, entretenho-me a interpretar e analisar a estatística alheia, quase sempre mais sólida do que o conhecimento obtido pelo senso comum. Não obstante do provérbio, eu não tenho uma crença profunda na veracidade dogmática dos números. Os números mentem muitas vezes.
Esqueçamos a possível poluição da amostra ou falha da mesma por erro humano e foquemo-nos na “desfiguração ideológica”. É verdade que, filtrando todos as “impurezas”, o resultado do estudo, em termos numéricos, tende para o concreto e objetivo. O problema está na análise subjetiva dos algarismos.
Tomemos por exemplo as sucessivas estatísticas americanas que revelam que, em termos percentuais, os negros são a raça que mais popula as prisões do país. Ou seja, o cidadão comum tende a interpretar isto de uma forma algo “racista”: os negros cometem mais crimes, são os mais violentos; afinal de contas a raça influencia as ações das pessoas; há pessoas que nascem mais propícias para cometer ilegalidades do que outras; etc…
Acho que o leitor minimamente atento já detetou o erro no pensamento deste cidadão hipotético mais desatento: não há uma correlação causal direta entre a raça e a prisão. Esclarecendo: são ignorados, propositada ou despropositadamente, fatores externos a este estudo, tais como o status, a classe social do indivíduo, a segregação negra na América — motivada por séculos de escravatura e de racismo institucionalizado —, a potencial “caça às bruxas seletiva” efetuada pela polícia (aqui até poderíamos falar de um racismo invertido), entre outras dezenas de fatores.
O problema com os números é que eles não se interpretam a eles próprios: do outro lado da análise está um ser humano que imprime a sua ideologia no papel. Imprime o seu respeito, ou o seu racismo. A sua religião, ou a sua descrença. Este tipo de desfiguração é o mais preocupante: neste caso falamos de um racismo sub-reptício, que escapa ao lado de todos, menos do leitor mais atento, capaz de apanhar o fio ao novelo.
O extremismo mais perigoso não é o que está explícito nos números. É o que está implícito na linguagem, na interpretação e, infelizmente para mim, no próprio jornalismo.
AUTORIA
João Carrilho é a antítese de uma pessoa sã. Lunático, mas apaixonado, o jovem estudante de Jornalismo nasceu em 1991. Irreverente, frontal e pretensioso, é um consumidor voraz de cultura e um amante de quase todas as áreas do conhecimento humano. A paixão pela escrita levou-o ao estudo do Jornalismo, mas é na área da Sociologia que quer continuar os estudos.