Qual é o melhor filme do ano e porque é que se chama The Lighthouse?
Todos os anos são lançadas centenas de filmes mais que competentes. “Competente” nem é um elogio muito lisonjeiro – a esmagadora maioria dos filmes mais banais e insípidos continua a ser competente a níveis técnicos. Afinal de contas, não é difícil encontrar um filme que nos entretenha e se evapore da nossa mente mal acabe. Dificilmente um filme muito incompetente tem visibilidade suficiente para não sair do caixote de DVDs a 1€ à entrada do Auchan (havendo, claro, exceções à regra). Até é bastante comum vermos excelentes filmes. Mas é extremamente raro vermos um dos primeiros planos de um filme e decidirmos “é este o filme do ano” sem que essa magia seja corrompida algures até ao fim, mesmo que só momentaneamente. Desde o primeiro plano envolvente dos dois atores principais, algures nos primeiros dois minutos de The Lighthouse, que soube que ia ser este. É uma sensação que só ocorre uma vez por ano, todos os anos.
Winslow (Robert Pattinson) aceita um trabalho de quatro semanas como assistente de faroleiro numa ilha remota, a meio de uma brava tempestade. O seu chefe (Willem Dafoe) nega-lhe acesso ao próprio farol, atribuindo-lhe tarefas mundanas de limpeza e manutenção. Quando o transporte de volta não aparece, os dois homens encontram-se presos na ilha, numa tempestade de álcool, irreverência e insanidade mental. Dias passam como se fossem semanas e semanas parecem dias.
Há, pelo menos, duas linhas de realidade diferentes a coexistir na tela durante The Lighthouse, e nunca se sabe bem qual delas é que estamos a ver. De costume, neste tipo de thriller psicológico arthouse, a vontade de desconstruir a narrativa e todos os seus fios cruzados é quase intrínseca. Mas a verdadeira beleza de The Lighthouse está na panóplia infinita de possibilidades e significados abstratos – quase que se quer só olhar e não perceber. Há casos e casos, mas neste, perceber é perder a magia e acabar com a provocação. Claro que não deixa de ser divertido arranjar teorias. Na base da narrativa, encontra-se um paralelo muito próximo ao antigo mito grego do titã Prometheus e o sábio Proteus – já desde A Bruxa que Robert Eggers (o realizador) demonstra um fascínio por histórias antigas e mitologia, algo traduzido para o ecrã através de imagens poderosas, quase como quadros de museu em movimento. Mais superficialmente, vem-nos à cabeça o óbvio conflito geracional, o poder da ganância, uma machadada à masculinidade tóxica e uma reflexão das relações laborais. E o melhor de tudo é que nenhuma forma de olhar para o filme é capaz de nos parecer objetiva.
O maior trunfo de Eggers, para além da subjetividade do seu texto e das suas imagens, é o fabrico de uma tensão em crescendo, cada vez mais paranóica e arrepiante. O ser humano teme o que não compreende, e cada trago de álcool ingerido pelas personagens é um shot de confusão conduzido diretamente ao sistema nervoso. O estilo visual do filme tem em consideração as preocupações do realizador – o aspeto quadrado da tela limita a exposição que o espetador tem ao cenário, impedindo qualquer tipo de foreshadowing. O preto-e-branco e o grão da película invoca o período de época em que o filme se passa, e a luz do farol (construído de raiz para o filme) é o simbolismo irónico que deixa a esperança dos moribundos à deriva no mar. Toda a cenografia provoca, de facto, uma sensação de enjôo marítimo, até mesmo o interior da casa onde as personagens residem. E nem é que o trabalho dos atores pareça pouco stressante – o próprio Robert Pattinson parece tão inebriado como a personagem que interpreta.
O que leva a outra discussão interminável – será o method acting, a arte performativa que leva os atores a permanecerem em personagem durante toda a rodagem, algo realmente respeitável? De acordo com Pattinson, sempre que a sua personagem estava alcoolizada, ele estava praticamente inconsciente, tendo até urinado nas calças e forçado o vómito várias vezes. Por outro lado, Dafoe é da opinião que tal método é apenas uma forma um pouco aleatória de se atirar ao papel, e que uma pessoa não precisa de se estar a afogar para saber o que é o mar profundo. É uma questão de técnica vs. natureza, a arte de imitar contra a arte do ser, com uma pitada de pinta de gabarolas à mistura (lembre-se de Jared Leto em Esquadrão Suicida, que enviou ratos mortos a outros membros do elenco para se preparar para o papel de Joker). Ambos os métodos produzem resultados diferentes, mas igualmente fascinantes no filme em questão, sendo o domínio da gíria marítima e do dialeto particular derivado da localização e profissão um dos mais impressionantes feitos por parte dos dois atores (ver o filme sem legendas conta como martírio), especialmente da parte de Dafoe.
Enquanto o verão é populado pelos grandes blockbusters e coisas tipicamente mais energéticas, o outono é a estação reservada para as apostas mais sérias e as campanhas da awards season – filmes a que tipicamente chamamos concorrentes ao Óscar. Todos os anos aparece um filme de género que passa despercebido tanto ao público em geral como à Academia, e embora ainda estejamos a quase a um mês das votações iniciais, podemos já dizer com certezas que esse filme será The Lighthouse.
Não se trata apenas do facto de ser uma pequena produção (o orçamento ronda os 4 milhões de dólares) ou de que é um filme que puxa dos elementos mais abstratos, a rondar o género do terror e do fantástico (duas palavras que não combinam com “Academia”), mas de ser um filme sobre tudo e sobre nada, e que testa os limites da imaginação. E numa altura em que o público prefere que lhes seja dada toda a papa à boca, não será um filme gravado em película a preto-e-branco que mudará o prisma. Mas, a nós, foi o que nos salvou o dia.
The Lighthouse não tem data prevista para estreia nas salas de cinema portuguesas, tendo, no entanto, sido exibido no Lisboa & Sintra Film Festival, com presença de Willem Dafoe.
Artigo Corrigido por: Mónica Harris