Opinião

Quem quer compactuar com o pior programa televisivo?

Fonte: Olhar a Televisão
Fonte: A Televisão

Não se fala de mais nada: “Viste aquele programa do agricultor?”, “Nem acredito que há sogras assim, viste isto?”. Normalmente nem sou de seguir a corrente, e muito menos de ver programas deste género, mas desta vez fiquei demasiado intrigada. Será assim tão mau como têm relatado? Como é que funciona um programa com agricultores? Ou um com mães casamenteiras?

Para quem vive enclausurado na sua bolha, no passado domingo, dia 10 de março, a TVI e a SIC estrearam programas novos. Enquanto a TVI nos brindou com cinco “belos” partidos e respetivas progenitoras, a SIC apresentou-nos uma mão cheia de homens do campo que procuram um amor que ponha fim à sua solidão.

Na SIC, a apresentadora Andreia Rodrigues, com o seu vestido amarelo, declara abertas as hostilidades. Por sua vez, na TVI, a batata quente passa para Leonor Poeiras, neste caso com um vestido laranja.

Vamos por partes. Comecemos no canal 3 (se é que ainda se pode chamar assim): o programa consiste na apresentação de cinco agricultores de diferentes regiões do país, todos com um aspeto em comum: querem encontrar uma patroa. A amplitude de idades vai dos 21 aos 50 anos. Já as localidades, vão do Alentejo ao Norte e até chegam aos Açores. Cada agricultor passa a apresentar-se, afirmando, entre outras coisas, aquilo que procura numa mulher e aquilo que lhe irá oferecer. Temos, fiando-nos nas suas palavras, indivíduos bem-dispostos, apaixonados, humildes, prestáveis, trabalhadores e sinceros. Um deles fez até questão de referir que é capricórnio (esta é para vocês, malta dos signos).

No que toca àquilo que procuram numa fêmea: “atraente aos meus olhos, inteligente, perspicaz, com atitude e charme; alguém com as mesmas ideias, alguém humilde, de bom coração, fiel”. Colocando as exigências de parte, é importante assinalar que todos estes homens já estiveram em relacionamentos, mas, por uma razão ou por outra (por exemplo a incapacidade, por parte da ex, de se adaptar à vida de campo), não deram frutos.

A escolha de um dos agricultores recai sobre a mãe. Pois é, a D. Zélia terá de aprovar, fincando o pé em como a moça deve ser “bonita, séria e trabalhadeira”, “porque ao pé de mim se não for trabalhadeira não para”. A senhora nortenha é a que vai mais longe: “Se ela não me dar um neto, não se casa com ele”, isto pois “Quem vai escolher a mulher ideal para o meu filho sou eu”.

Uma imagem com desenho

Descrição gerada automaticamente
Fonte: urbo

Torna-se fácil fazer a ponte para o programa da TVI (se calhar onde este último caso se enquadrava mais). Tal como a D. Zélia, as mães dos concorrentes do “Quem quer casar com o meu filho?” não se contentam com pouco e não olham a meios para encontrar a candidata perfeita para o seu bebé. Quando digo perfeita, é mesmo sem reparos. Procuram uma mulher disposta a criar uma família grande (“Acho que o sonho de qualquer mulher é construir família – ou devia ser”), que seja “boa menina de casa”, com “dentinhos muito brancos, umas maminhas razoáveis e um rabinho que se veja”, “terá de ser loira, mais velha”. Estas são algumas das exigências das futuras sogras.

Mas então e se as moças não souberem cozinhar? “’Tamos mal, porque é um rapaz de muito alimento e gosta de comer bem”. “O meu menino de ouro”, dizem elas, “tem de ser alimentado”. Porquê? “A minha intenção é passá-lo a uma das meninas, que se encarrega de o alimentar”. Mais claro que isto é impossível. Se não tiver os dotes necessários “está fora de questão”. Quem quiser, de facto, casar com o filho “tem de se habituar”. Os próprios rapazes afirmam: “Sou esquisito”. Então, mas “E se elas forem esquisitas contigo?”. Simples: “Vão à vida”. Mai’ nada.

Estas mães, que olham para cada rapariga que entra na sala como se fosse uma montra, estão convictas de que a sua vontade prevalece. “Tu fumas?”, pergunta uma mãe-galinha (galinheiro inteiro…). “Fumo”, retorque a possível noiva. “Pois, o André não gosta”. E se não estiverem dispostas a abdicar de tudo em prol do seu novo marido… Thank you, next.

Em ambos os programas, os senhores vão escolhendo a dedo as possíveis candidatas, reduzindo o número à medida que são eliminadas por não estarem à altura das condições de Vossas Majestades. Nós, espetadores, somos presenteados com emissões diárias de cada um dos programas para que possamos descobrir quem foram as sortudas.  

Uma das madames candidatas à herdade de um dos agricultores afirmava “A única coisa que eu sei ver é se os tomates estão maduros”. Ui, aí é que a porca torce o rabo. Não sabe ordenhar uma vaca? Então prepare-se e traga calçado em condições, pois está prestes a entrar numa jornada que a vai ensinar.

Fonte: Sindsep RR

Insólito. Enquanto fazemos zapping, vemos um agricultor de Bragança a ter as suas falas legendadas. Mudamos de canal e vemos gente nua. Ah, calma, tenho de ir às gravações automáticas, isto é outro programa. Agora sim: observamos rapazes com idade para terem juízo a fazerem curvas com as mãos, ilustrando o corpo que a sua pretendente deve apresentar. Foi a isto que chegámos? Foi a isto que chegou televisão portuguesa do século XXI?

Bem, pelo menos o da SIC tinha cães. Foi a única coisa boa que retirei. A única vez em que senti que realmente valia a pena estar a perder o meu tempo a ver aquilo foi quando apareceu um patudo com uma vestimenta preta, coberta de bananas. Tirando isso, não posso dizer que tenha sido tempo de qualidade.

Depois de assistir aos dois “programas” com atenção, tenho vários pensamentos a correr-me pela cabeça. Um dos mais vincados é “que cringe”. Não me cabe na cabeça como é que alguém teve estas ideias e foi, efetivamente, pago por isso. Não percebo como é que algo assim foi para o ar. Não percebo como é que há mulheres que se sujeitam a isto, a serem expostas desta maneira, sujeitas à aprovação de um paspalho qualquer. Das duas uma: ou é um meio para atingir um fim (uma bela herança), ou têm simplesmente muito pouca consideração por si mesmas.

Trata-se de mulheres que, deliberadamente, se inscreveram num programa para ser expostas em frente a homens, aperaltadas ao máximo para que eles gostem, e para andarem atrás deles como cães a um osso. Apesar de não ser utilizadora, penso que o “Tinder” seja uma opção mais razoável.

Dão tempo de antena a grunhos que acham que uma mulher é como uma vaca ou uma cabra do seu gado. É uma escrava, que serve para ficar prenha, para alimentar o bucho ao patrão e para satisfazer todas as suas vontades. Ficam fora de questão se tiverem uma caraterística que o menino não aprecia, e ainda prende o burro por não encontrar uma garina exímia. O melhor é que as mães, que já vagueiam por aqui há muito tempo, apoiam este comportamento. Algumas até trataram orgulhosamente da sua inscrição. Também, com uma educação destas, não admira que tratem as mulheres como objetos. O que me deixa incrédula é ser aceitável transmitir isto em televisão nacional.

Os canais genéricos estão a glorificar este tipo de atitudes, inclusive a financiá-las. E nós estamos a dar-lhes audiências. Nós, que temos valores diferentes daqueles que pertenceram aos nossos avós, tentaremos incuti-los da melhor forma aos nossos filhos. Então como é que se dá um passo atrás tão drástico? Um retrocesso inaceitável para os dias de hoje, na minha opinião. Andamos a consumir programação baseada em ideais das cavernas, da escravidão, da Idade Média. Do tempo em que as mulheres eram propriedade do seu senhor. Como é que ficamos chocados com essas realidades antigas quando somos confrontados com elas nas aulas de História e, mesmo assim, não nos revoltamos quando tentam normalizá-las em 2019?

Agora percebo toda a polémica que se criou à volta destes dois programas em específico. E é digna de ser criada. Não podemos celebrar o dia da mulher e, dois dias depois, presenteá-la com isto. Não podemos reclamar direitos, declararmo-nos feministas se depois compactuamos com este tipo de atrocidade. Toca a abrir os olhos. Toca a parar de visualizar programas que são uma ofensa à integridade do sexo feminino. Toca a pôr um fim à suposição de que as mulheres vivem para os homens. Estas “mães” não procuram noras: procuram empregadas domésticas. Procuram baby-sitters para os seus filhos incapazes, que foram sempre levados ao colinho e que, agora, na hora de sair do ninho, não aguentam sem uma ama. Ambicionam uma companheira que esteja disposta a abdicar de tudo aquilo que a carateriza, de todos os seus prazeres, da sua personalidade, raios! Elevam os standards pois é isso que os seus meninos merecem e nada menos que isso. Minhas queridas, a educação deve partir de vocês.

Concluo, a partir daquilo que vi nos programas que estrearam no domingo, que as mulheres de hoje em dia acham normal serem rebaixadas. Acham normal que as famílias portuguesas se sentem nos seus sofás ao serão e observem a forma como, quais cadelas, andam atrás de um rabo de calças. A forma como se apresentam e fazem figas para serem escolhidas, para estar à altura do gosto de um homem que nem sequer conhecem. O que é isto? Onde é que anda o senso comum? Volta, Casa dos Segredos. Estás perdoada!

Artigo revisto por: Rita Serra

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