SALVAS POR FOTOGRAFIAS
Uma rede de tráfico de crianças no Senegal e na Guiné-Bissau está a ser desmantelada por causa do trabalho de um fotojornalista português. As provas do crime recolhidas por Mário Cruz estão agora publicadas no seu livro “Talibes – Modern Day Slaves” (“Talibés – Escravos dos Tempos Modernos”).
Mais de cinquenta mil crianças mendigam, todos os dias, nas ruas do Senegal e da Guiné-Bissau. Famílias desfavorecidas vendem os filhos a falsas escolas corânicas, que escravizam e torturam crianças entre os 5 e os 15 anos. Muitas destas crianças não sabem quem são, onde nasceram ou quem são os seus pais, e, muitas vezes, tornam-se nos futuros agressores.
Esta realidade foi, pela primeira vez, documentada pelo fotojornalista da agência Lusa Mário Cruz. O repórter tomou conhecimento desta situação em 2009, quando foi fazer a cobertura das eleições presidenciais guineenses para a agência de notícias portuguesa. Seguiu-se uma pesquisa exaustiva, durante seis meses, e muito empenho na criação de uma rede de contactos no Senegal e na Guiné-Bissau. Em 2015, tirou uma licença sem vencimento, durante dois meses, e foi investigar a rede de tráfico infantil.
Antes do repórter fotográfico português, dois outros jornalistas tentaram denunciar esta rede, sem sucesso. Um jornalista guineense viu as suas mãos cortadas por ter fotografado com um telemóvel uma dahra, escola corânica.
“A minha responsabilidade é maior do que a minha vida. Eu tinha de voltar com a prova das pessoas que nem sequer podem sonhar”, afirmou Mário Cruz na apresentação do livro que resultou do ensaio fotográfico.
Movido pela crença de que “a mudança só acontece se estivermos informados”, o fotojornalista conseguiu entrar nas dahras e falar com várias crianças escravizadas; assistir ao dia a dia destas e presenciar situações de agressão, com a falsa descontração de quem tem de apertar a mão dos responsáveis pela captura destas crianças.
“A verdade é que nunca poderia estar preparado para ver crianças a ser chicoteadas à minha frente”, disse Mário Cruz.
Nas palavras do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o repórter, “além de um grande fotógrafo, é um grande jornalista”: “o saber estar, onde é preciso estar. O saber esperar. O saber lutar. O saber ultrapassar obstáculos quase impossíveis. (…) Saber conter a raiva, a indignação (…). Para acabar aquilo que o levou até ali, teve de tolerar situações, teve de engolir emoções, teve de sofrer para além daquilo que esperava sofrer ou está disposto a sofrer dia após dia”.
“Isto é um grande jornalista, porque é um jornalista de causas”, considerou o Presidente da República na sessão de apresentação do livro de Mário Cruz.
O fotojornalista de 28 anos não teve apenas o reconhecimento do Presidente da República; este trabalho valeu-lhe o Prémio Picture of the Year International 2016, o Prémio Estação de Imagem e a categoria de Assuntos Contemporâneos no World Press Photo (WPP) 2015.
“O WPP trouxe a visibilidade que eu procuro, não para mim, mas para os meus trabalhos”, disse Mário Cruz.
Logo nas 24 horas que se seguiram ao anúncio deste prémio, 28 crianças foram libertadas.
Desde então, o número de crianças resgatadas da rede de tráfico não parou de aumentar. Estima-se que já tenham sido libertadas mais de quinhentas crianças. As fotos que foram responsáveis pelo início do debate sobre o assunto figuram agora numa exposição itinerante por toda a Guiné-Bissau, bem como no livro “Talibes – Modern Day Slaves”, lançado no dia 1 deste mês.
Mais de trezentas cópias deste livro, financiado por uma campanha de crowdfunding, estão a ser distribuídas por instituições no Senegal, como forma de alertar os cidadãos para o que se está a passar.
Para além disto, o Presidente da República do Senegal decretou, pela primeira vez, que de cada vez que uma criança for encontrada na rua sem família esta deve ser recolhida. Nas ruas distribuem-se agora panfletos de prevenção e já foram várias as dahras denunciadas.
As fotografias cheias de escuridão, como as classificou Fernando Alves, jornalista da TSF, na apresentação do livro na Fnac do Chiado, estão a trazer luz ao mundo. Imagens a preto e branco que denunciam uma realidade dura honram o fotojornalismo, que, segundo Mário Cruz, está “vivo e tem um papel”.
“Os especialistas em fotografia dizem que a fotografia a preto e branco é A fotografia, porque vai diretamente ao essencial. Não se perde no que é acessório. Aqui, pela natureza das coisas, era evidente que se tratava de descrever a situação e que esta apelava a esse tipo de fotografia. Ele próprio [Mário Cruz] descreveu e o Fernando Alves também descreveu como no fundo se passa do reino da escuridão para a procura da luz e a dificuldade de encontrar a luz numa situação de escravidão. Portanto, provavelmente, não sou especialista para o dizer, tem toda a lógica a fotografia ser como foi”, disse Marcelo Rebelo de Sousa em entrevista à ESCS MAGAZINE.
Todas as fotos referentes a este trabalho estão incluídas no livro, que conta com uma edição quadrilingue: português, inglês, francês e árabe.
Em abril, no âmbito do quarto aniversário da ESCS MAGAZINE, Mário Cruz esteve na Escola Superior de Comunicação Social para dar um workshop sobre fotojornalismo. Aqueles que assistiram tiveram oportunidade de ouvir a história por trás do trabalho do fotógrafo.
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