Grande Reportagem

“Silêncio que se vai falar de artistas”

Maria Candal, Linita Marques ou Pedro Machado até podem ser nomes que, atualmente, pouco ou nada dizem a quem deles ouve falar, mas são nomes que já fizeram história. Nos dias de hoje, os três vão percorrendo os corredores daquela que é agora a sua casa, a Casa do Artista, partilhando memórias e contando histórias.

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Confortavelmente sentada num dos sofás que embelezam a chamada sala de visitas da Casa do Artista, repleta de quadros e fotografias de várias figuras ilustres da sua época, Maria Candal conta mais uma vez a sua história. Nascida em Candal, cidade que deu origem ao seu nome artístico, Maria era conhecida pela sua voz melodiosa desde tenra idade. «Logo em miúda comecei a cantar. Depois fiz uma revista no Sá da Bandeira e comecei a interessar-me pelo teatro e pela rádio, embora eu gostasse mais de ter sido bailarina. Eu gostava imenso de dançar, mas não tinha talento para isso».

Ainda que sem estudos, visto que na sua época «não era com facilidade» que se encontravam professores de voz, a voz notoriamente bem colocada e afinada de Maria, como ela orgulhosamente afirma, chegou aos palcos de Lisboa, cidade para onde se muda com os pais aos 18 anos. Estreou-se no Teatro Avenida com a revista Viva o homem. A partir desse momento ganha asas e começa a construir a sua carreira artística, chegando mesmo a cantar na Emissora Nacional, a rádio pública criada em 1935. «Nessa altura, para ir cantar na Emissora Nacional era preciso prestar provas, mas não foi necessário para mim. A emissora foi gravar a revista [Viva o homem] e passados 15 dias já estava a estrear-me na Emissora Nacional, no Ouvindo as Estrelas». Ainda que curto (Maria Candal retirou-se aos 35 anos, após o nascimento da sua filha), o percurso de Maria Candal ficou repleto de boas críticas e correu palcos por todo o país.

Colega de Nicolau Breyner, Raúl Solnado e até de Beatriz Costa, é com orgulho que relata a sua história, tentando não deixar que a emoção a atrapalhe. «Fiz umas coisas interessantes. Mas eu ainda queria fazer mais. Também não se pode ser muito ambiciosa». E porque foi no palco que passou grande parte da sua vida, Maria Candal assume, sem hesitar, que, mesmo que pudesse voltar atrás, voltaria a fazer das artes o seu mundo. Com um sorriso na cara e sempre com o olhar perdido em recordações, recusa-se sequer a pensar na sua vida sem o teatro. «Voltava a fazer tudo igual. Tive algumas deceções, mas tive também coisas muito boas. Compensa».

Mas porque não é só de coisas boas que a vida de um artista é feita, há dois anos, devido a um problema de saúde do marido, Maria viu-se obrigada a deixar a sua casa e ir viver para a Casa do Artista. Ainda que fale desse assunto com certa tristeza e cansaço, é graças à Casa do Artista que hoje o teatro continua a fazer parte do seu dia a dia. Foi esta mudança na sua vida que a fez regressar «aos palcos», confessa, ainda que, desta vez, como espetadora. «Eu quando estava em casa, com o meu marido ia uma vez ou duas vezes por ano ao teatro. Agora, não vou mais porque não posso deixar o meu marido assim. Mas gosto de ver. E gostaria de ver ainda mais».

Situada em Carnide, e, ainda que meio disfarçada pelas enormes árvores que adornam todo o seu jardim, as grandes letras em tons esverdeados que identificam a Casa do Artista não deixam ninguém indiferente. Ou pelo menos não deixa indiferente quem sabe o que esta casa de repouso significa para os artistas que nela habitam. Inaugurada no dia 11 de setembro de 1999, esta casa foi fruto da vontade que alguns artistas tinham de criar uma casa para artistas em Portugal. Raúl Solnado trouxe a ideia para Portugal, quando viu a Casa do Ator, em São Paulo, «numa das suas visitas ao Brasil, em 1965», como relata Ricardo Madeira, animador sociocultural. Há praticamente 18 anos, a Casa do Artista tem vindo a desempenhar a sua função, «acolhendo» e dignificando os artistas que fizeram história no nosso país, mesmo aqueles de quem poucas vezes ouvimos falar. Mais do que uma casa de «afetos e emoções», como a caracteriza Ricardo, é uma casa de reencontros. É exemplo disso o facto de Maria Candal e Linita Marques, outrora colegas de profissão, se terem reencontrado, ao fim de vários anos, pelos corredores da Casa do Artista.

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Também nascida e criada na região do Porto, é aos 15 anos que Linita se estreia no mundo do espetáculo com o grupo musical Orfeu, no teatro Carlos Alberto. Entre cantar ou representar, a decisão era complicada e é por isso que, a partir de 1943, junta o seu gosto por cantar à sua paixão pela representação e se estreia em diversas revistas e espetáculos de amadores. «Fui amadora durante 5 anos. Só depois é que tive a carteira profissional», destaca.

Tal como Maria Candal, o percurso de Linita não foi muito longo. Retirou-se aos 30 anos para se poder dedicar a uma outra paixão: as peles. Com uma volumosa gola de pelo preto ao pescoço, e com um sorriso vaidoso, a antiga artista de variedades apresenta-nos a paixão que lhe permitiu sobreviver na capital, quando se mudou para Lisboa: «quando vim não tinha conhecimentos artísticos. Como eu tinha cartas de representação das peles, fiquei logo empregada e optei pelas peles, porque o teatro ainda não é… seguro».

Apesar de não ter tido a sorte de conseguir viver do teatro, Linita não se mostra arrependida: «Eu tanto era apaixonada pelo teatro como pelas peles. E foi com as peles que eu sobrevivi este tempo todo».

Sempre sorridente e com um espírito bastante jovial em relação aos seus 91 anos, Linita não deixa que a sua doença, que a levou a vir para a Casa do Artista, lhe roube a vontade de viver. Em vez disso, relembra com saudade as suas viagens, quando o teatro ainda era a sua profissão, e todos os colegas com quem teve o privilégio de partilhar o palco. Sócia da Casa do Artista desde sempre, diz que aquilo de que mais gosta neste seu novo lar é o facto de ter podido reencontrar amigos e partilhar as divisões com outros artistas, que se tornaram seus colegas também, embora sejam agora de um palco diferente.

«Estou num ambiente de que eu gosto, e tenho colegas do Porto que trabalharam comigo». Palavras cruzadas e costura são o dia a dia de Linita, ainda que de vez em quando dê uma escapadela à rua para comprar a fruta que tanto gosta de ter no seu quarto. Opta por passar os seus dias na Casa, entretendo-se da melhor forma que lhe é possível.

Do outro lado da sala está Pedro Machado (no sofá estivera também Maria Candal, com os seus calções desportivos e a sua camisa branca), sentado confortavelmente, como se estivesse em casa. E estava. De portefólio debaixo do braço e com uma voz de quem sabe do que fala, começa por fazer questão de referir a cidade onde nasceu, o Porto. Muito confiante de si, afirma com a maior segurança do mundo que «mais do que seguir a música» desde sempre quis «ser artista, viver no mundo artístico». Ainda assim, a música acabou por se tornar a sua grande paixão, profissionalizando-se aos 17 anos. Em 1957, forma um trio musical, no seguimento dos grupos sul-americanos, Os três de Portugal, e juntos correram «grande parte do mundo».

Apesar de 30 discos gravados e sucesso incessante, o trio acabou por se separar, ao fim de 14 anos de trabalho, levando Pedro a descobrir, dentro da música, o seu grande amor: o fado. «Vim para o fado e, como diz o Carlos do Carmo, “vim para o fado e fiquei”», afirma. Assim que o tema fado veio ao de cima, Pedro deixou momentaneamente o seu passado, para falar do presente. «No fado a coisa está a ser adulterada, porque o fado vive essencialmente dos fados chamados tradicionais, e atualmente está a fazer-se um aproveitamento da genialidade de alguns intérpretes. Mas as pessoas não se apercebem de que não estão a tocar fado, só estão a tocar com um instrumento do fado: a guitarra portuguesa», afirma, não escondendo a sua opinião muito vincada, não tivesse sido, para além de artista, cronista no Diário de Lisboa. E como fado é amor, e como fado é destino, o músico não poderia ter deixado de lado a grande história de amor que a música lhe deu oportunidade de viver. Depois de um primeiro casamento não muito bem-sucedido, é graças ao fado que conhece a mulher de quem ainda hoje fala com um brilho especial no olhar: «Falaram-me de uma fadista que estava interessada em ir ao Porto e falar comigo. Ela foi cantar para mim em Lisboa e eu achei-lhe imensa graça e casei com ela. Apesar de nos termos divorciado, porque a coisa não correu muito bem, passado um ano voltei a pedi-la em casamento».

Depois de uma vida bastante viajada e cheia de aventuras para contar, é na Casa do Artista que Pedro Machado encontrou a sua última paragem. Apesar da doença que hoje lhe atormenta os dias, é com orgulho que afirma que «se pudesse voltar ao princípio», não se «importava nada de ser artista». Fecha com chave de ouro: «Gosto muito de ser artista».

Porque uma casa se faz com as pessoas que nela vivem, é ao passear pelos corredores desta casa, ao ver as paredes pintadas com retratos e histórias de artistas como Maria Candal, Linita Marques ou Pedro Machado que se percebe o que é realmente a Casa do Artista. Três histórias de vida que, por muito diferentes que possam ser, tinham em comum a coisa mais importante: o amor pelas artes, não fossem eles artistas. E se é para falar de artistas, que se faça silêncio.