Sobre o jornalismo actual
A detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates é o ponto de partida deste artigo de opinião. Contudo, não me debruçarei sobre as polémicas questões jurídicas que ensombram este caso. Em vez disso, interessa-me reflectir sobre os contornos da sua cobertura mediática. O cenário em que os acontecimentos se desenrolam constitui um desafio para a prática do jornalismo. A primazia dos fait divers sobrepõem-se, na maioria dos casos, à objectividade dos factos. Neste sentido, este artigo pretende, sem qualquer pretensiosismo, lançar algumas pistas para a reflexão sobre a actualidade do jornalismo.
O enredo em torno da novela Sócrates é digno de um argumento hollywoodesco, deixando pouca margem de manobra para os jornalistas conseguirem elaborar um retrato lúcido dos acontecimentos. Em certas ocasiões, parece que a reality TV deixou de ser propriedade exclusiva do Entretenimento e tomou conta da Informação. Estaremos perante o tão apregoado infotainment? Neste âmbito, há que saber separar as águas. Não creio que a literacia mediática do espectador comum seja suficiente para discernir uma coisa da outra.
Os noticiários televisivos são o retrato diário de todos os capítulos desta novela. Vejamos dois pontos:
1) Os directos. A quantidade de directos lançados ao longo do alinhamento do noticiário justifica-se? A mínima movimentação suspeita é um pretexto para um directo. Mas, na maioria dos casos, as intervenções não nos fornecem nenhum dado novo. Por vezes, sou solidário com a provável frustração do jornalista, ao qual não resta outra hipótese senão “encher chouriços”.
2) As últimas horas. Uma última hora implica uma notícia extraordinária e não prevista. Se todos os motivos são suficientes para justificar uma útlima hora, então, a noção de última hora deixa de fazer sentido.
O jornalista é, acima de tudo, um cidadão. Neste sentido, não sou apologista da visão romântica e ilusória do jornalista imparcial e isento de qualquer vestígio de subjectividade. Se assim o fosse, em vez de jornalistas teríamos um batalhão de robots a debitar factos. O jornalista tem o direito de imprimir o seu ponto de vista à notícia. Mas não é a imparcialidade que está em causa. Há que ter cuidado porque, perante o “quente” da situação, o jornalista pode acabar por emitir juízos de valor. Isso, sim, já se afasta do seu âmbito profissional.
Os media dão ao público aquilo que o público quer. Errado! O público quer aquilo a que o habituaram. Se os media não derem uma coisa, o público não a vai querer. Será que o público quer mesmo saber qual foi a primeira refeição de Sócrates na prisão? Não creio. Mas se os media dão essa informação, é óbvio que, sendo o ser humano por natureza curioso, o público vai querer saber outros pormenores igualmente banais (e ridículos). Estamos a assistir a um Big Brother.
Não quero alongar-me mais (embora fiquem alguns aspectos por referir – quiçá num outro artigo). Ainda assim, espero que este texto contribua, de alguma forma, para promover a reflexão sobre as práticas jornalísticas actuais e alertar para a necessidade de uma educação cívica que contemple a literacia mediática dos cidadãos.
(ilustração por Rute Cotrim)
AUTORIA
Diz que é o cota da ESCS MAGAZINE. Testemunhou o nascimento do projeto, foi redator na Opinião e, hoje, imagine-se, é editor dessa mesma secção. Recuando no tempo... Diz que chegou à ESCS em 2002, para se licenciar, quatro anos mais tarde, em Audiovisual e Multimédia. Diz que trabalha há nove no Gabinete de Comunicação da ESCS – também é o cota lá do sítio. Diz que também por lá deu uma perninha como professor. Pelo caminho, colecionou duas pós-graduações: uma em Comunicação Audiovisual e Multimédia (2008) e outra em Relações Públicas Estratégicas (2012). Basicamente, vive (n)a ESCS. Por isso, assume-se orgulhosamente escsiano (até ser cota).