Sweet dreams are made of…
Sonho acordado, lúcido, premonitório ou até de consumo. Há muitos tipos de sonho. O que entre eles há de intrinsecamente comum é a satisfação de uma vontade, seja ela reprimida ou cobiçada. O material dos sonhos são as memórias, mas a direção deles são os desejos. E é no inconsciente, resultado da soma de todas as memórias e as suas possíveis combinações, que os sonhos tem lugar.
No livro Die Traumdeutung, considerado a obra fundadora da psicanálise, Freud inaugurou a teoria da análise do sonho, cuja atividade descrevia como “a estrada real para o conhecimento dos processos mentais do inconsciente.” A partir daí, ele abandonou a hipnose e passou a criar um método de associação livre, investigando os sonhos para mapear a mente do seu doente.
O estudo do sonho como objeto psicanalítico ganhou relevância especial através daqueles que sofriam de stress pós-traumático, após a I Guerra Mundial. Isto provocou uma alteração na forma como se tratavam os doentes psicóticos, trazendo à tona a importância dos sonhos no processo de reconhecimento do eu e dele no seu meio. Ou seja, sonhar, mais do que revelar uma mensagem cujos elementos podem ser falsamente interpretados por pesquisas rápidas na Internet, fala sobre nós, na nossa psique e no nosso emocional particular.
Enquanto função biológica, o sonho foi selecionado positivamente ao longo da evolução dos mamíferos, porque permite prospetar o futuro com uma probabilidade maior do que o acaso. Podemos pensar que não sonhamos, mas, na verdade, apenas pessoas com lesões cerebrais graves não têm esta capacidade. O facto de muitas vezes não nos lembrarmos dos sonhos está relacionado com a falta do lugar destas narrativas na nossa sociedade, no nosso quotidiano.
Diariamente, vivemos momentos onde as experiências protegidas pelo inconsciente se tornam suscetivelmente mais acessíveis. Assim, os sonhos funcionam como um celeiro de cenários e soluções que comungam as vivências e expectativas da forma como a mente e as emoções as interpretam – como se fosse a projeção de algo imaginado pelo indivíduo.
O abandono progressivo do sono e dos sonhos é uma peça central no mal-estar que experimentamos e onde encontramos um paradoxo no qual, numa era em que temos tanto acesso ao conhecimento e a novos meios tecnológicos, temos ao mesmo tempo a sensação de que caminhamos para um futuro distópico. Esta incoerência é vista pelo neurocientista Sidarta Ribeiro como uma insónia do mundo, uma espécie de acúmulo coletivo de angústia. Segundo este especialista em neurofisiologia e autor do best-seller O Oráculo da Noite, as pessoas estão privadas de sono. “Esta supressão ocorre devido à invasão da luz elétrica – dos ecrãs do telemóvel por exemplo – que leva a que as pessoas durmam tarde e acordem cedo abstendo-se com isso da segunda metade da noite onde temos o sono REM, onde mais sonhamos.”: é nesta fase que as memórias ficam mais ativas, gerando uma experiência subjetiva como num filme. Ainda que o corpo esteja imóvel, o córtex cerebral tem uma atividade semelhante à de quando está em vigília. O cérebro desconecta-se do mundo exterior e toda sua atividade é endógena.
Os benefícios desta fase do sono vão desde a aquisição de novos conteúdos à promoção da adaptação, regulação do emocional e reestruturação das memórias, para apelar à criatividade num processo de reordenação das ideias velhas que geram ideias novas. Let it be e Yesterday foram duas músicas que surgiram em sonhos de Paul McCartney. A tabela periódica criada por Mendeleev também surgiu a partir deste processo de abdução.
Sidarta propõe ainda uma teoria sobre como a mente humana evoluiu a partir da proximidade com a natureza, mais do que com a cultura. O livro propõe que os sonhos foram “inventados” nos últimos 200 milhões de anos, ao longo da evolução dos mamíferos. A conjetura proposta é a de que os nossos ancestrais mais primitivos começaram a desenvolver uma capacidade de simular probabilisticamente o futuro, como no caso de um animal que busca água noutro local diferente daquele onde sofreu um ataque inesperado de um predador.
Ao longo do desenvolvimento humano, passamos a ter uma expansão da consciência em que ao estarmos desligados do exterior ativamos memórias do passado, ajudando a construir hipóteses sobre o futuro; não de forma determinística, mas com base no ontem, como será o amanhã. Na antiguidade, os governantes exigiam ter nas suas cortes intérpretes oníricos. Quando passamos a narrar estes sonhos para o grupo do qual fazíamos parte, gera-se uma nova máquina de acúmulo cultural em que, por exemplo, sonhar com os mortos era, ancestralmente, uma interpretação da evidência da vida após a morte. Desta forma, criamos este espaço mental onde posteriormente foi formulado o próprio processo da mente humana, através da criação de conceitos como fé e religião.
Quem perde horas de sono tem prejuízos cognitivos e emocionais, levando o indivíduo a tornar-se, potencialmente, num perigo para si mesmo e para a sociedade, levando-o a um isolamento social e desintegrado da comunidade. Solidão e depressão são os próximos passos nesta espiral descendente.
Uma forma de reverter este processo é colocar o sono e os sonhos de volta na nossa vida. Ter um sono de qualidade deve ser priorizado em detrimento das nossas escolhas de vida. É evidente que manter bons hábitos de vida e relações pessoais saudáveis é de extrema importância, mas as horas em que o consciente está em repouso são as que permitem processar o que vivenciamos, o que adquirimos e que permite a nossa evolução.
A falta de respeito a este momento leva ao desenvolvimento de doenças cardíacas e cognitivas, sendo que as constantes noites de sono mal dormidas ou interrompidas ao longo dos anos são tidas como uma das causas do mal da doença Alzheimer.
Com base nas memórias do passado, o futuro foi sendo construído – e tem aqui um papel fundamental como fonte de novas ideias, estratégias e adaptação. Ultimamente, a emergência da guerra e da pandemia somadas com a grande catástrofe climática colocou-nos numa situação crítica onde temos dificuldade de nos adaptarmos às alterações que nós mesmos causamos; e o facto de estarmos desprovidos dessa ferramenta neurobiológica de produção de futuro, de imaginação e simulação das consequências das nossas ações faz com que cada vez mais cometamos atos irreversíveis e de graves consequências.
Num momento tão particular como o sonho – seja ele durante o sono ou a vigília – a expansão da nossa consciência requer esta qualidade para nos reaprendermos a reconectar connosco e com o que nos rodeia.
Deste modo, sonhar como ato empático, levando a uma viagem de introspeção sobre o modo como as nossas ações de hoje afetam o amanhã, torna-se imprescindível para retornarmos a nossa natureza essencial. Procurar fazer da cama o lugar de repouso, ausente de ecrãs e apps de controlo do sono. Ao despertar, temos a memória da última cena do último sonho. Se pudermos tomar nota deste último momento, passamos a exercitar o resgate de uma habilidade atávica.
Recolocar o sonho no lugar de formação do eu e, consequentemente, do coletivo pode ser um dos gestos mais eficazes para a cura do sonambulismo. A velocidade do consumo, a ausência de responsabilidade coletiva e do sentido do eu, paradoxalmente, colocam-nos na busca de realizar desejos inconsequentes.
Fonte da capa: claudia.abril.com.br
Artigo revisto por Andreia Custódio
AUTORIA
Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.