Editorias, Literatura

Desejos e um assassinato

Muitas raparigas têm medo de ter duas personalidades, mas Marta pensa nisso a cada segundo.


“Penso que o meu coração se quebrou. Este é o anel que me tiraram e agora estou feliz. Por Deus eu acordei de um sonho que não sei qual era. E sinto que a minha mente foi remexida. Deixo, agora, que o morto perseguido seja feliz.” Marta, com uma lanterna apontada à sua cara, lia este texto de Edgar Allan Poe, com tamanha excitação.
– Como é que gostas disso? – perguntou Raquel.

– Eu adoro isto. É como um xarope. Saboroso e pegajoso. – respondeu Marta.

– É assustador. – comentou Raquel.

– É a parte assustadora que faz com que haja diversão. – rematou Marta.

Marta levantou-se rapidamente da sua cama e arrumou o livro na prateleira branca.

– Raquel, imagina que podias pedir três desejos. O que é que pedirias?

– Não gosto de pedir desejos. Lembram-nos daquilo que não temos. Tu és muito melhor a pedir desejos do que eu, Marta.

– É verdade. Se pudesse, desejava um botão para parar o tempo.

– O quê? – indagou Raquel.

– Quando o botão fosse pressionado não só parava o relógio como todo o tempo. Tudo iria congelar e assim poderíamos roubar tudo o que queríamos das lojas, das casas das pessoas (mesmo que estas estivessem em casa) e podíamos vigiá-las. Terias controlo total e ninguém saberia que eras tu. E as pessoas nem saberiam que estavam a ser vigiadas. Essa é a melhor parte.

Marta era uma rapariga bastante misteriosa. Carregava segredos, enigmas, histórias sem fim.

– Mas quando pressionasses o botão do tempo tu ficarias velha e as outras pessoas não…

– Eu já pensei nisso. Todos ficariam velhos, menos eu. – respondeu prontamente Marta.

– E como é que não vão perceber que tu estás sempre jovem?

– Isso é problema deles. – descredibilizou Marta.

O calendário assinala que é dia 24 de dezembro, véspera de Natal. As ruas estão decoradas, ouvem-se músicas natalícias nos cafés e a neve cai, cobrindo tudo de branco.

– A Marta é que devia estar aqui. Connosco. Esta era a sua época preferida. – lamentam-se Raquel e Ana.

Naquele dia fazia um ano do assassinato de Marta. O culpado ainda não tinha sido descoberto – mas as provas estavam lá todas. As paredes desenhavam aquele dia e as escadas tinham o sangue marcado. A pessoa que a matou era demasiado experiente e, como tal, usou luvas para garantir que não ficavam impressões digitais no local do crime. Até àquele dia o corpo de Marta ainda não tinha aparecido.

Raquel, todos os dias, revivia o momento em que soubera da morte de Marta. Ela não conseguia acreditar que a tinha perdido para sempre, mas a dor já se tinha apoderado dela.

Os meses passaram e a fé – que todos dizem ser a última a perder-se – morreu. “Como pode alguém ser capaz de tirar a vida a outro alguém?”, perguntava-se muitas vezes. Qual seria a dificuldade de pegar numa arma e com uma única bala perfurar a epiderme, avançar pela derme, correr os vasos sanguíneos numa maratona e chegar ao destino final? O que antes era um bonito coração a bater num segundo passa de repente a mil pedaços, como uma espécie de puzzle; mas neste puzzle nenhuma das peças volta a viver.

Num segundo matamos e num segundo morremos. Também podemos querer concretizar fantasias assassinas e levar horas a matar alguém. A verdade é uma: ela estava morta e a morte que a levou foi demorada. Havia tempo e paciência. Paciência para olhar para um corpo sofrido e exposto.

Mais um ano passou. Tinha chegado a época preferida do ano de Marta. No entanto, ao invés de no ano passado, já havia sido descoberto o culpado. Miguel estava preso. Tudo dizia que ele era o assassino de Marta. Naquela cidade pequena não poderia haver certezas de nada.

Raquel, quando soube que Miguel fora quem matara Marta, revoltou-se. Chorou até não poder mais e desapareceu durante uns dias para poder pensar em tudo o que acontecera.

Quando se viu frente a frente com Miguel, gritou, pontapeou-o e deu-lhe um murro na maçã do rosto esquerda, deixando-o logo com uma nódoa negra. Pediu explicações e implorou para saber onde estava o corpo de Marta. Miguel não disse uma palavra. Não estava, de todo, arrependido. Raquel olhava para Miguel e via que ele tinha tido imensa paciência para a matar. Vê-la a gemer, gritar aos céus para que a levassem, a suplicar por menos horror e mais segundos de vida. Ninguém lhe reconhecera o talento para a matar.

– Se queres saber tudo o que aconteceu leva o envelope que está no meu cacifo. Sabes qual é o número e sabes como abri-lo. – disse a Raquel.

Raquel não perdeu tempo: foi à escola onde ela, Miguel e Marta andavam, e pôs-se em frente ao cacifo. Rapidamente, colocou o código do cadeado que estava a fechar o cacifo. Estava lá o tal envelope, que guardava uma cassete. Ela pegou nele e correu para casa. Tinha as mãos a tremer. Mal conseguia colocar a cassete no leitor de cassetes antigo que tinha no quarto. Pressionou play. Pressionou, de seguida, sem ainda terem passado 20 segundos do vídeo, stop. Queria fazer um rewind para que Marta voltasse. Para a ver, ouvir a sua gargalhada e sentir a sua pele, que cheirava sempre a perfume de flores. Naquele vídeo estava tudo. Tudo o que tinha acontecido. Tudo o que ela podia não querer saber.

Miguel montou um sistema de vídeo em toda a casa de Marta. Tinha isto planeado meticulosamente há meses. Será que ele queria mesmo matá-la? Porquê? Marta tinha poder sobre todas as pessoas e isso intimida quem tem consciência desse poder. Ela sabia tudo. Raquel só pensava que esta era a única “desculpa” que ele poderia ter para a matar: ela saber tudo sobre ele e ele ter medo que ela pudesse usar tudo o que sabia contra ele.

O vídeo mostrava Miguel, vestido de preto, a entrar em casa de Marta. Subia as escadas com cuidado. Marta estava no quarto, ao telefone com Ana, irmã de Miguel. Miguel abriu a porta. Marta ouviu um barulho, e, num ato bastante rápido, virou-se e viu Miguel. Nem tempo teve para reagir. Miguel bateu-lhe com um taco de madeira na cabeça. Depois arrastou-a para as escadas e simplesmente… atirou-a. Marta já estava inconsciente na altura, tamanha fora a pancada que Miguel lhe dera na cabeça. 
Marta galgou os 15 degraus da escada. Miguel aproximou-se dela e atirou-a para uma das paredes brancas da sala. Saiu pela porta das traseiras pegando no corpo de Marta pelos pés.

O vídeo acabava aqui. Raquel não conseguia conter a raiva, o ódio e a repugnância que sentia naquele momento. Só pensava em fazer exatamente o mesmo a Miguel. No entanto, não conseguia deitar uma lágrima. Pensava que estas já tinham secado, sendo que há dois anos chorava a morte da sua melhor amiga.

Saiu de sua casa e só parou de correr quando chegou à cela de Miguel. De tão alterada que estava, o guarda não a deixou entrar dentro da mesma.

– Porquê? Porque é que a mataste? O que é que tinhas contra a tua própria namorada? – berrou para Miguel.

Miguel olhou para Raquel e com um sorriso malicioso disse:

– As pessoas nascem e morrem todos os dias. Ela foi apenas mais uma.