A Arte da Fome
Dois homens em cena, uma enorme capacidade de interpretação, uma luz da moda da Primark a centro do palco e uma sala cheia, ao ponto de dizerem à entrada “Sente-se onde quiser”. O ambiente não poderia ser mais apropriado à compreensão e empatia gerada pelos três contos kafkianos, “O Primeiro Sofrimento”, “Josefine, a Cantora ou o Povo de Ratos” e “Um Artista da Fome”. No modesto palco do teatro São Luiz estes contos ganharam vida, numa devoção à arte quer das personagens, quer dos atores.
O trapezista, numa presença etérea representado por um feixe de luz, transmitia ainda assim o seu perfeccionismo e peculiaridades. A encenadora, Carla Bolito escolheu a perspetiva daqueles que veem, admiram e procuram agradar o trapezista. Observando-o sempre de baixo como se de um Deus se tratasse, cedendo aos seus caprichos e exigências. Uma adulação ao que faz, ao que se submete pela sua arte, o empresário que o tratava quase como se um pequeno deus menino se tratasse. O Primeiro Sofrimento quase que narrado por Ivo Alexandre enquanto empresário e trapezista. Transmitindo apenas com a entoação a voz, o sofrimento do artista que, apesar estar nas alturas, queria mais e mais.
O feixe de luz desaparece, dando lugar a uma conversa que se torna o centro da ação. O tema desta ― o cantar de Josefine ― o cantar que é muito dicotómico e, simultaneamente, uma incógnita. Pode fazer-se um paralelismo entre esta conversa e as discussões que surgem por causa de um ponto preto numa tela, o que é então considerado arte. As personagens, dois homens que já presenciaram o canto de Josefine constatam entre ironias que esta é uma diva do povo. Josefine, com o ego alimentado pelo silêncio de quem escutava o seu esforçado assobio, catapultava-o com a sua presença e postura. Não é mencionada star quality porque mais que um cromo dos ídolos, Josefine tinha e impunha o seu carisma de uma forma inteligente, aproveitando-se da debilidade dos que paravam para a escutar. Entrou triunfante em cena, dos ares, com uma cortina escarlate a seu redor e fez -se ouvir e, mais que isso, sentir.
O artista da fome foi anunciado com igual pompa e circunstância. Este que é um arquétipo de Franz Kafka teve a sua história narrada de tal forma que sentimos a sua constante dor, desespero e incompreensão. A comédia também se fez sentir, tal como a crítica àqueles que não procuram compreender a arte dos outros, e a usam apenas como entretenimento.
Tal como o trapezista e Josefine, o artista da fome tem uma visão única do que faz, são artistas que a sociedade não compreende. É a ambição, o idealismo, a ideia de superação, a postura aliada a uma obsessão que torna único o que faziam e, embora o caso deste último tenha caído no esquecimento e no escárnio do povo, este sempre foi fiel à sua arte de passar fome.
O fim da atuação fez-se sentir, não houve ovações, mas durante todos os aplausos questionei -me sobre quais seriam as fomes que Cláudio da Silva e Ivo Alexandre passam.