Soul: Cores e talento à parte, é uma questão de respeito
Mais do que um filme incrivelmente bem conseguido, Soul é relevante e, acima de tudo, necessário. Não obstante a dobragem desprovida de tato artístico, o recente filme da Pixar prima tanto pela incrível história, como pela importante mensagem que lhe está inerente.
Como se de um presente abençoado se tratasse, Soul estreou no dia de Natal e veio encerrar 2020 da melhor forma. Um filme repleto de Jazz, humor e dúvidas existenciais, capaz de deixar qualquer graúdo a divagar por devaneios caóticos sobre o sentido da vida ou a falta deste.
Ao longo de pouco mais de hora e meia, acompanhamos aquele que seria o melhor dia da vida do nosso protagonista, Joe Gardner – um professor de música de uma escola básica que acredita ter nascido com um único propósito: seguir as pisadas do pai e singrar no mundo do Jazz enquanto pianista. No entanto, Joe acaba por tropeçar na imprevisibilidade da vida e, literalmente, cair numa realidade que o ultrapassa.
Soul fala de duas personagens incrivelmente compatíveis: Joe Gardner e a 22, provenientes de dois mundos totalmente opostos: o “nosso” planeta Terra, onde demasiadas almas perdidas deambulam entre trabalhos, quase em piloto automático, à procura de um propósito e sentido para a sua existência; e o Grande Além – uma representação genial do que existe antes e depois da nossa efémera passagem pela vida.
A narrativa está repleta de perguntas e completamente despida de respostas. A única certeza que nos elucida é a de que na vida não há certeza alguma. E ainda bem! O dia de amanhã é uma total névoa, uma verdadeira incógnita e nada que se assemelhe a uma garantia. Por isso, esta história relembra-nos daquilo que nos alimenta a alma e dos “pós de fada” que conferem magia ao simples facto de estarmos vivos.
Ora, Soul mostra-nos a importância dos amigos, da família, de prestarmos atenção aos sentidos e ao silêncio e de fazermos o que nos preenche. A verdade é que, pela azáfama do dia-a-dia ou pela cegueira que caracteriza a sociedade moderna, muitas vezes nos esquecemos de valorizar aquilo que nos faz levitar e nos deixa em transe sem recurso a substâncias ilícitas.
De mãos dadas com o existencialismo, o mais recente filme da Pixar convida-nos a refletir sobre o que justifica a nossa passagem pela terra e o que nos alimenta a alma. Às tantas, envergamos pela metafísica e por questões profundas e entramos num território complexo e potencialmente assustador. Às tantas, como quem não quer a coisa, esta obra encantadora para crianças trata temas relevantes dentro do ecrã e problemáticas (ainda mais) urgentes fora dele.
Pela primeira vez, a cultura afro-americana viu-se representada – e, acima de tudo, celebrada – num filme da Pixar. Se, na indústria americana, Soul representa um necessário passo em frente no que à interculturalidade diz respeito; na portuguesa, personifica uma questão incrivelmente antiga, mas estupidamente atual – a ausência de representatividade da comunidade negra na cultura.
Soul está “no forno” desde 2016 e nasce com o intuito de dar palco e, consequentemente, representatividade ao trabalho afro-americano e à sua cultura. Na versão original, o ator Jamie Foxx dá voz ao protagonista da obra e a dobragem do restante elenco ficou entregue exclusivamente a atores negros. No entanto, Portugal pareceu não acompanhar a intenção primordial do filme, visto que a dobragem é inteiramente composta por atores brancos nas vozes principais – como é o caso do ator Jorge Mourato, que dá voz ao nosso pianista de jazz.
A situação ultrapassa o limite do razoável e a indignação dominou o público português. Por motivos óbvios, com o intuito de reclamar uma nova versão da dobragem, nasceu uma petição, lançada no segundo dia de 2021, que já conta com mais de 15 mil assinaturas, algumas delas de relevantes personalidades portuguesas, como Dino D’Santiago, Ana Sofia Martins, Sara Tavares, entre tantos outros. O objetivo é claro: respeitar a importância histórica do momento e implorar por pequenas soluções para problemas urgentes e sistémicos, como é o caso do racismo em Portugal e da escassa representatividade da comunidade negra na cultura.
A voz não tem cor, mas tem essência. Não é uma questão de talento, mas de representatividade. Não é só mais um filme da Pixar: é um ponto de viragem. Soul é relevante – desde o conteúdo que apresenta à discussão que gera; é arte que temos o privilégio de apreciar e o dever de discutir.
Cores e talento à parte, é uma questão de respeito.
Artigo redigido por Bruna Gonçalves
Artigo revisto por Inês Paraíba
Fonte da imagem de destaque: Amazon
AUTORIA
Sou de Sintra, tenho 23 anos e, ao contrário de muitos clichês, nunca sonhei ser jornalista. Escolhi o curso no último dia de inscrições para o ensino superior, meios às cegas, e apaixonei-me pela ESCS desde o primeiro dia. Um belo de um amor à primeira vista, para os mais românticos. Hoje, tenho plena certeza de que o meu futuro passa pela comunicação, seja numa rádio ou numa redação. Na verdade, desde que tenha liberdade para explorar temas e dar asas à minha criatividade, sou feliz!