É urgente falar de Aristides de Sousa Mendes
No passado dia 27 de janeiro assinalou-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, no 76º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Tal serviu como pretexto para se evocar, de várias formas, a incontornável figura de Aristides de Sousa Mendes.
Teria cerca de oito ou nove anos quando o meu pai, natural de Canas de Senhorim, distrito de Viseu – íamos nós a caminho da sua terra natal –, fez um desvio por Cabanas de Viriato, uma freguesia vizinha. Na pacatez da aldeia erguia-se uma estupenda mansão em completa ruína. Embora desgastada pelo tempo e pela falta de habitação, não me recordava de ter visto uma casa mais bonita do que aquela. “Devia ter pertencido a alguém muito importante”, pensei. O meu pai explicou-me que pertencera a Aristides de Sousa Mendes, antigo cônsul português que passara vistos e vistos clandestinos a pessoas que fugiam da guerra, para as salvar. Houve qualquer coisa naquela história que me envolveu, para além do óbvio testemunho de coragem e de destemor. Naquele momento, aquela figura, embora ainda não lhe conhecesse uma fotografia, parecia alcançável. Próxima. Quase tangível.
Mal imaginava eu que a Casa do Passal (é este o seu nome), desamparada e caída, refletia o igualmente amargo destino do seu proprietário. Não demorei muito para descobrir que Aristides de Sousa Mendes fora um diplomata português, nascido no dia 19 de julho de 1885, em Cabanas de Viriato, concelho de Carregal do Sal. Exercia as funções de cônsul-geral de Portugal em Bordéus, cidade fronteiriça de França, onde se encontrava quando, a 1 de setembro de 1939, as tropas alemãs invadiram a Polónia, assinalando o início de uma das tragédias mais devastadoras de sempre: a Segunda Guerra Mundial.
Foi nessa altura que Aristides de Sousa Mendes se tornou parte da História de Portugal, da Europa e do Mundo, conduzindo aquela que é descrita pelo historiador israelita Yehuda Bauer como “talvez a maior ação de salvamento feita por uma só pessoa durante o Holocausto”. Confrontado com a dura e desesperada realidade da guerra, bem ali à porta da sua casa, o cônsul começou a passar, no ano de 1940 e com maior incidência no mês de junho, vistos portugueses que permitiriam aos fugitivos atravessar Espanha e prosseguir até Portugal, para que, posteriormente, conseguissem viajar para outros pontos do mundo – principalmente para o continente americano.
Portugal era, então, oficialmente neutro. No entanto, continuava a nutrir alguma simpatia pela política de Hitler, de uma forma não tão oficial. O cônsul português desobedece, assim, à Circular 14 emitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros – cuja tutela o então Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, havia assumido desde o início da Guerra Civil de Espanha. O documento proibia os cônsules de carreira, representantes de Portugal no estrangeiro, de conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros “aos estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, aos apátridas, aos portadores de passaportes Nansen e aos russos”; “aos estrangeiros que não aleguem de maneira que o Cônsul julgue satisfatória os motivos da vinda para Portugal e ainda àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm” e ainda “aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou de aqueles de onde provêm”.
Aristides era um homem fiel às suas convicções: “Não podia eu fazer diferenças de nacionalidade, visto obedecer a razões de Humanidade que não distinguem raças nem nacionalidades”. É António Moncada de Sousa Mendes, seu neto, que recorda esta frase do avô no seu livro Memórias de um neto cuja leitura aconselho a quem se interessar pela história do diplomata filantropo. Foi este espírito que o fez desobedecer e emitir vistos e vistos a milhares de refugiados. Até receber um telegrama de Salazar a ordenar a sua comparência em Lisboa, para justificar a sua desobediência.
Depois de um processo disciplinar duvidoso, já em Portugal, Aristides foi severamente punido por desobedecer a ordens superiores. Salazar acabou-lhe com a carreira e, sendo formado em Direito, também perdeu o direito a exercer advocacia. Não lhe foram pagos salários durante meses. Quando o fizeram, foi a metade do vencimento e a título provisório. Até a carta de condução lhe foi retirada.
Aristides de Sousa Mendes morreu na miséria, a 3 de abril de 1954, no Hospital dos Franciscanos, em Lisboa, sem nunca o seu gesto humanitário ter sido reconhecido em vida. Tentara, por várias vezes, que Salazar e até o Papa validassem o seu Ato de Consciência, em vão. Foi repetidamente ignorado. Anos depois de ter passado, pela primeira vez, pela Casa do Passal (a qual teve de ser abandonada, devido às dívidas contraídas pelo cônsul, após o castigo aplicado pelo Presidente do Conselho, tendo voltado para a família no ano de 2001, quando foi adquirida pela Fundação ASM) e de me ter sido apresentada a figura de Aristides de Sousa Mendes pelo meu pai, continuo sem conseguir imaginar injustiça maior que esta.
É urgente conhecer e reconhecer Aristides de Sousa Mendes, um nome que carrega o peso da própria Humanidade. Falar de Aristides de Sousa Mendes é evocar valores de cidadania, de integridade, de justiça, de filantropia, de bondade, de coragem. Todavia, o caminho até à reabilitação do seu bom nome foi sinuoso e agoniante.
Ironicamente, o reconhecimento surgiu primeiro no estrangeiro, em Israel: o então chefe de governo Ben-Gurion mandou plantar vinte árvores em sua homenagem, em 1961. Pouco tempo depois, foi-lhe atribuída, a título póstumo, a Medalha de Ouro dos “Justos entre as Nações”, pelo Yad Vashem (Autoridade Nacional para a Memória dos Mártires e Heróis do Holocausto), em 1967 (tendo a nomeação sido feita no ano anterior).
Portugal tardou a seguir o exemplo e manifestou-se publicamente, pela primeira vez, na segunda metade da década de oitenta (recordemos que o diplomata faleceu em 1954!). Em 1987, o então Presidente da República, Mário Soares, entregou aos descendentes da família a Medalha da Ordem da Liberdade, no grau de Oficial. No ano seguinte, é aprovada, por unanimidade, a reintegração de Aristides na carreira diplomática, com promoção a Embaixador, na Assembleia da República.
Os princípios e os valores de Sousa Mendes, que dignificam o respeito pelos Direitos Humanos, continuam a ser necessários e gritantes na atualidade. Numa sociedade que continua a primar pela falta de justiça e de empatia entre os cidadãos do mundo, é cada vez mais necessário falar sobre o seu Ato de Consciência – é esta a denominação atribuída à ação do diplomata português ao emitir todos aqueles vistos. Foi isso mesmo: uma intervenção consciente, altruísta e desinteressada.
Quanto ao número certo de vistos emitidos, ainda existe muita discussão. Aponta-se para que tenham sido trinta mil, sendo que um terço foi atribuído a judeus. Há quem diga que tenham sido menos (os negacionistas defendem que, na verdade, não passou nem um). De facto, tivesse ele passado apenas uma centena de vistos ou até menos, continuaria a ser meritório do mesmo respeito e reconhecimento. Foi a sua bravura e a sua boa vontade que definiram o seu ato e não apenas o número de pessoas que procurou salvar.
Aristides de Sousa Mendes tinha uma família numerosa, uma vida confortável, uma profissão de prestígio. Poderia ter voltado as costas aos milhares de refugiados desesperados em Bordéus. Tinha todas as razões para ignorar as suas solicitações e súplicas. Escolheu não o fazer. Escolheu desobedecer e, acima de qualquer outra coisa, sacrificar-se, mesmo sabendo que o seu gesto não iria passar despercebido aos olhos do Governo português.
Vários têm sido os reconhecimentos, ao longo dos anos, feitos ao diplomata. Escolho destacar um dos mais recentes: a 9 de junho de 2020, cumpriu-se mais um passo importante na reabilitação da memória póstuma de Aristides de Sousa Mendes – o Projeto de Resolução Concessão de Honras do Panteão a Aristides de Sousa Mendes, apresentado pela deputada Joacine Katar Moreira, foi aprovado, por unanimidade, na Assembleia da República.
Esta homenagem será concretizada através da criação de um cenotáfio ou de outra solução memorial, pois o cônsul continuará a repousar no cemitério de Cabanas de Viriato, localizado nas traseiras da Casa do Passal, junto da sua família, a qual esteve sempre do seu lado enquanto, corajosamente, desobedecia. Brevemente, a vivenda de Cabanas de Viriato será, finalmente, musealizada e tornar-se-á na sede da Fundação Aristides de Sousa Mendes, com o objetivo de perpetuar o seu legado.
Estes gestos contribuem para a construção da memória de um homem que o Estado Novo tentou apagar e esquecer. Tirou partido do poder que tinha enquanto representante de Portugal no estrangeiro, para praticar um bem maior. Optou por semear a tolerância e não se alhear ao genocídio nazi ali tão presente. Não se compreende, porém, como é que um Portugal já democrático reconheceu o seu gesto tão tardiamente…
Creio que a palavra “herói” não deve ser utilizada com leveza, nem de forma banal. Afinal, o que é um herói? Há poucas semanas li, numa publicação de um grupo de Facebook criado em tributo a Aristides de Sousa Mendes, vários comentários sobre como ele havia nascido no país errado.
O Dr. António Moncada de Sousa Mendes, neto do cônsul, respondeu-lhes prontamente: “Ou talvez tenha nascido neste país com todos os seus defeitos, para justamente fazer com que os seus compatriotas possam evoluir com o seu exemplo!”. Talvez seja esta uma das definições de herói, não tivesse Sousa Mendes sido um raro exemplo de humildade, de afirmação dos valores de liberdade (tanto comunitária, como de tomada de decisão) e de luta contra a discriminação.
Recordar Aristides de Sousa Mendes no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto é absolutamente legítimo e necessário. No entanto, nesse caso, teremos de ter em conta o trabalho de investigação da Professora Irene Flunser Pimentel, que explica que o Holocausto foi precedido por várias etapas e que, no verão de 1940, Sousa Mendes se tornou num herói do Holocausto antes de este, efetivamente, se ter iniciado (recordemos também as palavras do historiador Yehuda Bauer).
É urgente recordar e dar a conhecer Aristides de Sousa Mendes, o cônsul insubordinado, para que possamos semear laços de inclusão, de empatia e de respeito pelo próximo. Quase oitenta e um anos decorridos do seu Ato de Consciência, continuamos a reclamar a sua memória. Para que nunca mais nos esqueçamos.
Seja em que dia for.
Artigo revisto por Lurdes Pereira
AUTORIA
Uma pessoa de muitas paixões. Por isso, licenciou-se em Informação Turística, está a terminar o Mestrado em Jornalismo e quer tirar Doutoramento em História Contemporânea. A ideia de ter uma só carreira durante a vida toda aborrece-a. A Inês gosta de escrever, de concertos, dos The Beatles, de Itália, de conduzir e dos seus cães. Sonha em visitar, pelo menos uma vez, todos os países do mundo.
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