Cinema e Televisão

Perpetuar a cultura do estupro, tentando combatê-la

A objetificação da mulher é uma realidade desde sempre. As consequências que advêm disto são, desta forma, tão profundas quanto o nosso processo de socialização pode alcançar. A cultura do estupro é um dos reflexos muito presentes no nosso dia a dia. De acordo com o Centro das Mulheres da Universidade Marshall, este termo é utilizado para descrever um ambiente no qual o estupro é predominante e no qual a violência sexual contra as mulheres é normalizada nos media e na cultura popular. 

A Banalização do Estupro na História da sétima arte

É muito comum vermos filmes, séries e livros com cenas ou casos de estupro feminino, que variam em níveis de problematização. A maioria banaliza o estupro por meio da sua normalização, acompanhada da objetificação do corpo feminino. Em Superbad e 16 Primaveras o abuso de mulheres embriagadas é motivo de piada. Noutros casos utilizam o abuso sexual como um desenvolvimento importante da história, sem a sensibilidade que é necessária.

Em Regresso ao Futuro, a cena de estupro só serve para revelar a bravura do herói: um homem. Em Kill Bill e Millenium: Os Homens que não Amavam as Mulheres, a violação define e resume quem as personagens principais são, deixando-as até mesmo mais fortes depois. E há aqueles casos em que a cena de estupro é só “para retratar a realidade”. 

FONTE: Rolling Stone
Lorraine Baines (Lea Thompson), Biff Tannen (Tom Wilson) e George McFly (Crispin Glover) em Regresso ao Futuro

Estes são os filmes mais danosos. Com riqueza de detalhes, não há nenhum propósito nas cenas além de causar agonia nos atores e no público.

No filme O Último Tango em Paris, o diretor, Bernardo Bertolucci, e o ator principal, Marlon Brando, combinaram sozinhos a cena de estupro, que também envolvia a atriz Maria Schneider, com o objetivo de captarem uma humilhação real. Eles modificaram o roteiro sem a avisar, desvalorizando os seus direitos, o seu corpo e a sua humanidade. Maria Schneider foi estuprada em set.  

FONTE: Plano Crítico
Marlon Brando e Maria Schneider em cena no filme O Último Tango em Paris

As cenas de violação em filmes não são educativas, não fazem parte do entretenimento, apenas causam desconforto no grande público, ao mesmo tempo que deixam as pessoas acostumadas a vê-las. Uma comparação necessária, visando a compreensão plena do assunto é entre cenas de estupro feminino e masculino. A segunda opção não é menos comum no cinema porque o índice de estupros é muito maior entre mulheres, mas porque o estupro feminino é normalizado ao ponto de ser mais aceitável de se ouvir, ler ou assistir.  Um fruto do machismo enraizado em nossa sociedade.  

Os diretores e roteiristas utilizam estas cenas para gerar impacto. A realidade infeliz é que filmes com momentos assim marcam o público. Buscando repercussão, inconscientemente, acabam por banalizar um dos crimes mais hediondos. 

O filme O Último Duelo é um destes casos. O roteiro não objetifica a vítima e nem justifica o abuso, acusando-a. Seu caráter não é moldado com base no evento. E também mostra consequências reais, físicas e emocionais do acontecimento. 

O único problema real são não uma, mas duas cenas longas, cruas e desnecessárias. 

O Duelo pelo Orgulho Masculino e o Filme Dedicado à Honra Feminina

Fonte: Cinema.nos

O Último Duelo é um drama histórico, baseado em factos reais, que se passa na França medieval do século XIV. Jean de Carrouges (Matt Damon) é um cavaleiro respeitado, de grande bravura e habilidade no campo de batalha. Jaques Le Gris (Adam Driver) é um inteligente e famoso nobre, além de ser o fiel escudeiro de um dos mais importantes lordes, Pierre d’Alençon (Ben Affleck). Num país onde os duelos até a morte não são mais tão comuns, o rei, Carlos VI (Alex Lawther), abre uma exceção ao permitir que os dois se enfrentem por uma causa de grande importância: uma acusação de estupro. 

A esposa de Carrouges, Marguerite (Jodie Comer) acusa Le Gris, o velho companheiro de guerra de seu marido, de ter se aproveitado dela. Jean, então, pede autorização ao rei para realizarem o duelo. Ele precisava de defender a sua posse (sua esposa), além daquele ser o único jeito de se obter uma resposta divina sobre quem era a verdadeira vítima na situação. Quem vencesse o duelo estaria a falar a verdade, perante os homens e Deus. 

FONTE: Tribernna
Marguerite Carrouges (Jodie Comer)

A narrativa é dividida em três partes, nas quais é apresentada a “verdade” segundo cada uma das personagens principais: Carrouges, Le Gris e Marguerite, nesta ordem. Com um roteiro muito bem estruturado, a repetição de cenas e diálogos não é maçante. À medida que as partes do filme se desenvolvem, sentimos que estamos a nos aproximar cada vez mais daquilo que aconteceu. A “verdade” defendida pelos roteiristas (Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon) é deixada para o final, através do testemunho de Marguerite. 

A diferença entre cada versão é tamanha, que os atores principais quase interpretam três personagens diferentes ao longo do filme. Porém Jodie Comer é a estrela maior, trazendo simultaneamente força, elegância, dor, determinação, timidez e autoconfiança. A sua personagem é a chave fulcral na história e é executada perfeitamente.  

FONTE: Olhar Digital
Jaques Le Gris (Adam Driver), Marguerite Carrouges (Jodie Comer) e Jean Carrouges (Matt Damon)

O filme explora, de maneira muito inteligente, as nuances e as consequências da decisão de Marguerite e de Carrouges. Semelhantemente, mostra a mentalidade machista da época. Com a direção de Ridley Scott (Casa Gucci, Gladiador e Blade Runner) os temas são propostos de maneira crua e intensa, apelando muito aos sentidos e sensações. A fotografia bem feita, mas pouco inovadora, transmite a força audiovisual tradicional das produções de Scott. Contudo, neste caso, esta força visual, não foi bem aplicada no conjunto da obra.  

Uma mulher forte, determinada e corajosa é representada. Lutou por justiça, numa sociedade (bem próxima da atual) que é rápida em acusar, desvalorizar, contestar e julgar as mulheres. Um caso de estupro que precisava de ser retratado. Na tentativa de transpassar a busca pela honra masculina, o filme fala sobre a honra feminina. A falha está na cegueira perante a honra e a dignidade fora das telas. 

Uma causa forte com uma solução preguiçosa 

Fonte: Magazine.HD

Ouso dizer que a produção foi preguiçosa. Existem formas mais criativas de se abordar o tema. Por exemplo, a cena em que Marguerite conta a seu marido o que sofreu (na primeira parte) é muito mais interessante e impactante do que as duas cenas explícitas. É um momento sensível, onde a dor e a vergonha estão estampadas no rosto de Jodie Comer. Gera uma reflexão, além de estar muito distante do desconforto. 

Além disto, não se precisa de uma cena de estupro para o desenvolvimento do antagonista. Ao longo das partes, a relação estranha que existe entre Marguerite e Le Gris fica mais clara pelas ações e reações de ambos. Não há amor nas atitudes do homem, que se diz apaixonado. O suspense que é causado, à medida que identificamos desvios de caráter em Le Gris, é muito mais instigante, inclusive em termos de desenvolvimento de narrativa. A dor vai sendo construída ao invés de ter picos previsíveis. 

Falar sobre o estupro é necessário, mas não deve ser feito de modo relaxado. Dar voz às mulheres e aos seus sofrimentos na ficção deve ser o espelho da realidade. É dececionante notar que O Último Duelo é um filme muito rico e com potencial de evitar cair num clichê, mas não o consegue, por conta da cegueira e ignorância coletivas perante um problema grave. 

Fonte da capa: Aventuras na História – UOL

Artigo revisto por Inês Pinto

AUTORIA

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A curiosidade e o questionamento são naturais desde que se lembra. Da História até às artes, sempre tomou gosto por se informar e por compartilhar com outros as suas descobertas. Assim, ao mesmo tempo que o conhecimento e a comunicação surgiam como um estilo de vida, os caminhos jornalísticos e pelo mundo da comunicação social se apresentavam como os melhores a se trilhar.