Cinema e Televisão

Seja abençoado o vosso voo

“Tenho tido saudades de pôr o meu nariz nas ondas dos teus cabelos”

O sentimento de saudade, palavra tão característica da língua portuguesa, é provavelmente o grande condutor do filme A Metamorfose dos Pássaros.

No dia 11 de dezembro, a ESCS Magazine reportou, na secção de atualidade, a notícia de que o filme A Metamorfose dos Pássaros era um dos 93 candidatos ao Óscar de Melhor Filme Internacional. Infelizmente, na noite do dia 21, já se sabia que o filme da autoria de Catarina Vasconcelos não tinha avançado para a shortlist dos Óscares de 2022.  

Tal não impede, no entanto, que este filme se venha a revelar um clássico da cinematografia portuguesa. Inclusivamente, o mesmo foi, no dia 1 de janeiro, transmitido na RTP2.

Fonte: vertentesdocinema.com

Duas almas que não só se completavam como se transbordavam”. 

A história, inspirada na família e na infância da própria realizadora, começa por nos dar a conhecer duas personagens, Beatriz e Henrique, bem como o modo como ambos se conhecem e consequentemente se apaixonam e se casam. 

Henrique é oficial da Marinha e encontra-se permanentemente em viagem, longe de Beatriz. Desde logo, temos acesso às múltiplas cartas e outras mensagens que ambos trocam entre si.

Fonte: metamorfosedospassaros.pt

Sinto a vossa falta. Olho para os marinheiros que me rodeiam e, não sei se é de mim, mas vejo neles a tristeza da falta de terra. Noto não poucas vezes que o mar despreza os meus problemas. Mas ele tem tanto com que se preocupar. (…) Não tem tarefa fácil o mar, e eu sinto compaixão por ele. Mas não o posso olhar muito tempo porque o meu corpo diminui e fica tão pequeno que se enche de tonturas. (..) Deixa-me sempre muito espantado como é que uma coisa tão infinita consegue entrar por nós adentro”.

Longe estão também os seus seis filhos: Jacinto, José, Teresa, Pedro, João e Nuno. Tendo escolhido o mar, Henrique perdera a infância dos filhos. Beatriz, muitas vezes chamada de apenas Triz, nutre uma grande conexão e um grande amor à natureza. É ela que tem a missão de cuidar dos filhos e educá-los em terra firme. Aliás, foi perante esta transformação dos filhos de Beatriz para adultos que Catarina escolheu o título de Metamorfose dos Pássaros.

De notar que, como pano de fundo, está o período da guerra colonial. Aliás, lá para o meio da 1h40 de filme, existe uma cena dedicada a vários selos de Portugal e das colónias, que inclusive expõem símbolos do Estado Novo. 

Fonte: printscreen do filme

Observava cada rosto e imaginava o terror daquelas pessoas, quando por mar chegaram homens de outras terras que diziam que aquele lugar agora lhes pertencia. E, sacando de chicotes e penas, os portugueses começaram logo a escrever por cima deles. Jacinto não conseguia parar de pensar que não se pode descobrir um continente em que já viviam milhões de habitantes”.

Jacinto é o pai da realizadora Catarina Vasconcelos. Um rapaz que tem o sonho de poder ser pássaro. Desde logo, os pássaros têm uma aparição recorrente tanto a nível da própria narrativa como a nível visual e até auditivo. Um funeral de um pássaro em que a oração proclama: “seja abençoado o vosso voo”. Uma mulher com cabeça de pássaro a cortar legumes. O chilrear como som ambiente. 

Fonte: Twitter

Este é, acima de tudo, um filme multimédia, no qual o espectador assiste a vários tipos de arte. É provavelmente um dos fatores que mais distingue este filme em relação a muitos outros. Tal como um livro de poesia pode incluir fotografias, aqui narração, escrita, música, canção e som ambiente têm todos o seu momento de brilhar, sempre de forma intercalada. Além disso, a própria fala é muito volátil: monólogos de várias personagens, diálogos, e, esporadicamente, risos de crianças, gritos de brincadeiras, sussurros e sopros de múltiplas vozes ao mesmo tempo.

Fonte: imdb.com

O próprio filme consegue inserir um estilo de humor muito próprio capaz de nos esboçar um sorriso no rosto. A temporização das músicas com a imagem é feita de forma muito minuciosa, sendo que determinados sons transportam-nos para um novo e caricato plano. Uma cena que também serve de exemplo ao subtil sentido de humor deste filme é quando o narrador começa a enumerar as tarefas que competem ao homem e à mulher. À mulher são atribuídas ações como o aborto e o arranjar a casa. Assim que se começa a enumerar as tarefas destinadas ao homem, um secador de cabelo é ligado e deixamos de ouvir o que quer que seja.  

É impossível não nos sentirmos cativados com a parte visual deste filme. Tal não é de admirar tendo em conta que a realizadora estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Como se de uma pintura se tratasse, cada plano podia muito bem ser enquadrado e posto em exposição. O cortar do pescoço da galinha, o vasto oceano, as paisagens verdejantes, a aproximação das veias das mãos, as raízes das folhas, o desabrochar das flores… Por detrás do plano aproximado de cada objeto e de cada detalhe é fácil perceber que existe um grande cuidado e uma notável atenção em transmitir uma mensagem. Cada plano traz poesia.

A voz das várias personagens é, por si só, também um interessante ponto de análise.   A calma e a clareza com que cada um fala carrega consigo tristeza e ao mesmo tempo esperança. 

O clímax do filme é muito provavelmente quando nos é dado a conhecer a morte de Beatriz. Com a perda da mãe, a relação de Catarina com o pai deixa de ser apenas uma relação entre pai e filha. No final, temos um cheirinho daquilo que foram os comentários do pai da realizadora ao guião do filme: “há aqui coisas que não aconteceram bem assim. Eu nem sou Jacinto.” 

Fonte: are.na

Os mortos não sabem que estão mortos. Morte é uma questão dos vivos. Ainda hoje não me lembro bem do dia. Os dias em que algo tão grande acontece, como o dia em que uma mãe morre, nunca se tornam memórias. Ficam para sempre presos em nós, como se fossem sinais que nascem na nossa pele, para nunca mais saírem. São demasiado dolorosos para atravessarem o nosso cérebro. Por isso mantemo-los na pele”.

Um filme cheio de simbolismos, mas que mesmo assim continua a deixar muito em aberto, o que permite ao espectador interpretar cada momento da forma que mais sentido lhe fizer. Ao fim e ao cabo, temos esta constante sensação de simplicidade e, simultaneamente, de que existe uma grande complexidade por detrás.

É um dos poucos filmes que consegue fazer pontaria certeira àquele cantinho recolhido no nosso coração. Ao mesmo tempo, sussurra-nos “coisas bonitas”, como dizia Sara Tavares, deixando qualquer um deliciado e com uma fortíssima sensação de nostalgia. Nostalgia, porque, além de ser um retrato de uma família, é uma história do próprio Portugal, feita de um bocadinho da história de todas as famílias que o constituem.

Fonte: comunidadeculturaearte.com

Mãe, tu foste com os pássaros, mas é de ti que me lembro sempre que vem a primavera.

Fonte da capa: Viennale

Artigo revisto por João Nuno Sousa

AUTORIA

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Lembro-me que em pequena tinha o desejo de pisar cada pequeno recanto do mundo. Assim que pude fugi da minha terra natal, onde a única coisa de que ainda tenho saudades é de comer tripa com chocolate enquanto apanho com um vento gelado no rosto e olho por entre o casaco para o mar bravo. Vim para Lisboa com o intuito de estudar algo que me fizesse realmente sentir feliz e realizada. Nos meus tempos livres o mais provável é encontrarem-me pelas ruas de Lisboa a tirar fotografias ou então enfiada numa biblioteca com uma pilha de livros à minha frente.