Ode à intemporal consciência negra
Ainda não estamos em abril, mas o ativismo na música e a canção de intervenção são transversais a qualquer efeméride. Num tempo de tumulto, debate grosseiro e ‘farsismos’, a política é entretenimento. A política também pode ser arte – o “artivismo” – e a celebração da cantiga negra é exaltada através dos artistas que, ao longo das décadas, deram o corpo às balas – nem sempre figurativamente. Ainda bem que a cantiga também é uma arma.
Fela Kuti é uma das referências da música africana e, particularmente, do afrobeat. Na Nigéria, cria um género musical que combina o jazz, o funk, o rock psicadélico, os ritmos tradicionais africanos e o highlife, vindo do Gana.
Numa ácida e revolucionária segunda metade dos anos 60, Kuti esteve dez meses nos Estados Unidos. A exposição à herança intelectual de Malcolm X e ao movimento Black Power, que defendia a autodeterminação das pessoas com ascendência africana nos Estados Unidos, alteraram permanentemente as motivações do músico. A partir de temáticas “românticas” e quotidianas, as canções tornaram-se visivelmente mais centradas nas vicissitudes sociais.
Uma nova consciência levaria o músico a formar a República de Kalakuta (por recordar o “buraco negro de Calcutá”, na Índia, onde estiveram detidos os prisioneiros de guerra britânicos), perto de Lagos, comuna onde estava localizado o seu estúdio de gravação, independente do regime militar que governava o país. As constantes denúncias de Kuti à corrupção nigeriana ganharam destaque internacional e conduziram a sua própria voz ativista a uma prisão repetida e anunciada.
O documentário Finding Fela é uma dedicada análise acerca dos impactos políticos e culturais exercidos pelas famigeradas capas dos seus discos, criadas pelo artista gráfico Lemi Ghariokwu. O álbum Gentleman, de 1973, é famoso pela imagem de um macaco com vestes, símbolo das comunidades africanas aliadas a uma adesão cultural dos padrões de vida europeus e a uma mentalidade colonial conservada. Estes desenhos carregados de cores acompanhavam o significado lírico daquilo que fazia soar a agulha.
Nina Simone não é só “Feeling Good”
O homicídio de Medgar Evers, ativista negro pelos direitos civis e figura proeminente da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, marcou o ano de 1963 no Mississippi, e não só. Nina Simone não ficou indiferente e, com uma ira implacável e inesperada para uma época de brandos (e brancos) costumes, cantou Mississippi Goddam a plenos pulmões. Viria a chamar-lhe a sua “primeira canção de direitos civis“.A 7 de abril de 1968, apenas três dias após o assassinato de Martin Luther King Jr., Nina Simone gravou e incluiu a emocionada canção de homenagem Why? (The King Of Love Is Dead) no álbum ‘Nuff Said, editado ainda nesse ano. Todo o concerto foi dedicado à memória do ativista político, escrito em sua homenagem.
A preocupação da cantora na denúncia do racismo é absolutamente inegável. Em 1966, incluía Four Women no álbum Wild Is The Wind, uma canção onde usava quatro arquétipos de mulheres negras para retratar os sofrimentos de uma classe estereotipada: a escrava que teve de aguentar a dor, a filha de mãe negra e pai branco, que destaca o sofrimento dos negros nas mãos de brancos em posições de poder, aquela que tinha de se prostituir para sobreviver e a descendente de escravos, amargurada pelas gerações de opressão. Um retrato assombroso, mas fiel à realidade (feminina) afro-americana.
Hip-hop é contracultura
Manuseando um sample de, precisamente, Four Women, canção trazida por Nina Simone, Jay-Z compõe a faixa The Story of O. J., incluída no álbum de 2017, 4:44. O tema é simples e direto: “mais ou menos escuro, rico ou pobre; se fores um negro, continuarás sempre a ser um negro”. Numa abordagem diferente, com recurso ao caso do ator e ex-jogador de futebol americano O. J. Simpson, o rapper dá conta de que ser negro não é “perdoado”, seja qual for a classe social ou a quantidade de dígitos na conta bancária. Já em Spiritual, do ano anterior, Jay-Z condenava fortemente a violência policial sobre afro-americanos.
Ainda no hip-hop, Janelle Monáe é rapper, atriz, cantora e, claro, ativista. No epicentro de um ano fervoroso para o movimento Black Lives Matter, em 2015, Janelle Monáe, em conjunto com vários elementos do coletivo artístico Wondaland, lançou a canção Hell You Talmbout, onde enumera arrepiantemente o nome de vítimas negras em casos de violência policial. Em Portugal, um fenómeno similar: depois de tocar a faixa Mulher Batida, dos Orelha Negra, surgiu a homenagem da cantora A Garota Não, que mostrou ao público o nome de cada mulher vitimada pela violência doméstica em 2022, num momento de emoção e tremor, partilhado por vários festivais de música no país.
Do alto de um privilégio branco, relembro a luta negra e os artistas, incluindo aqueles que não foram mencionados, que brilhantemente criaram peças de verdadeiro e intemporal artivismo.
Fonte da capa: Jesus Carlos
Artigo revisto por Matilde Gil
AUTORIA
A Joana acha que é demasiado nova para ter uma biografia. Tem 19 anos, estuda Jornalismo e vem de Torres Novas. Não, não é a cidade do Carnaval. Nem a das bifanas. A Joana fica irritada quando confundem. Às vezes também lhe chamam Inês. Na ESCS Magazine espera que não tenham feito confusão, porque o que queria mesmo era escrever sobre desporto. Ora bolas, aconteceu outra vez. Lá terá de ser música.