Paredes com Histórias
Fotos: Ana Rita Nunes e Pedro Miranda
Nestas paredes está um convento, que foi mandado construir por um rei que queria descendência. Aqui cabe um povo inteiro. Um povo pobre, faminto e oprimido pela monarquia e pela Igreja. Há um padre que sonha em voar e que apadrinha a união de um casal que não tem a bênção da Igreja. Há um ex-militar sem mão que se une a uma rapariga que, quando em jejum, consegue ver o interior das pessoas.
Esta rapariga consegue ver por dentro, mas há outros que nem por fora. Aqui há também quem não queira não ver. Há uma cegueira coletiva. Está cá um homem que cegou repentinamente no trânsito, outro que cegou por levar este a casa, outro por tentar descobrir a cura para a cegueira, outros e outros por estarem no local errado à hora errada cegaram também. Mas ainda há cá uma mulher que não cegou. É uma epidemia. Nem o isolamento destas pessoas num antigo manicómio impediu a cegueira de se alastrar, obrigando os indivíduos a viver sem dignidade humana, apenas com os seus instintos primários. É a lei do mais forte sobre o mais fraco.
Quando o perigo da cegueira espreita, há que olhar com cuidado para estas paredes. A ditadura Salazarista, o embrião da II Guerra Mundial, a Frente Popular Francesa, a Guerra Civil Espanhola, o desenvolvimento do nazismo, está cá tudo, perguntem a Ricardo Reis, que desembarcou em Lisboa no final do ano de 1935 para ver confirmada a já sabida notícia da morte de Fernando Pessoa.
Pessoa não é o único morto que cá vive. Há muitos por aqui. Há também outro rei que recebeu a ajuda dos cruzados para combater os Mouros no Cerco de Lisboa. Pelo menos assim reza a história nacional, não a de outro rapaz que por aqui anda. A história desse rapaz é outra: tem um “não” inserido neste episódio. Segundo ele, os cruzados e o rei português não estavam de mãos dadas. Não é a verdadeira, mas não deixa de ser uma história válida. Deve ter sido por isso que a rapariga, outra rapariga que ainda não surgiu nesta história, o incentivou a escrever a sua visão da narrativa do cerco de Lisboa.
Por norma, as paredes sustentam-se com tijolos, mas estas não. Na Fundação José Saramago as paredes são feitas com histórias. Histórias dentro de histórias onde estão mais histórias que contêm histórias.
Na Casa dos Bicos, em Lisboa, vivem pessoas, lugares e tempos. Vivem letras e livros com um objetivo: “conseguir-nos tornar mais humanos” promovendo a cultura, a defesa dos direitos humanos e do ambiente tendo por base a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esta fundação foi criada em 2007 e ocupa a Casa dos Bicos desde 2012, onde é possível visitar uma exposição – “A semente e os frutos” – sobre a vida e a obra do nobel da literatura português.