A Autópsia de Jane Doe: quando os mortos são piores que os vivos
Às nove e trinta e cinco da noite, estamos sentados num banco de cinema a ver um grupo de polícias a encontrar aquilo que parece ser um homicídio múltiplo. Uma casa de dois andares está coberta em sangue e com corpos daquilo que parece ser uma família espalhados pelas várias divisões. Na cave, é encontrado o corpo de uma jovem, nada ensanguentado nem mutilado como todos os outros, enterrado na terra. Uma polícia aproxima-se do chefe e diz “não há sinais de entrada forçada. Parece que a família é que estava desesperada por sair.”
Este é o mote inicial para “A Autópsia de Jane Doe”, cuja antestreia foi no passado dia 7 de março. O filme de André Øvredal (realizador de O Caçador de Trolls) conta a história de Tommy (Brian Cox) e Austin Tilden (Emile Hirsch), pai e filho, que trabalham numa mortuária e que se veem a fazer uma autópsia no mínimo surreal a uma Jane Doe – uma rapariga sem identificação – que foi encontrada na cave da família que apareceu morta. À medida que vão tentando descobrir a causa da morte da desconhecida, a família Tilden descobre também os segredos mais negros da sua vida.
É um filme de terror e, por isso, nunca deixa de ser previsível. Os sustos são poucos e nas alturas certas, mas alguém que conheça minimamente a organização de um filme deste género sabe exatamente quando vão surgir e de que forma. Não há nenhum plot twist nem informação de que ninguém está à espera – mas nada disto torna o filme numa má obra cinematográfica. Aliás, apesar de não ser inovador em grande parte da sua construção, continua a ter coisas muito bem feitas.
É de notar a maneira como o áudio é trabalhado ao longo do filme; todo ele é construído à volta de períodos de silêncio, sem recurso a banda sonora nem a falas das personagens, que são seguidos por barulhos bruscos e altos. São momentos que desconcertam os sentidos (o silêncio é, muito possivelmente, das coisas mais desconfortáveis para o ser humano) e que ajudam a aumentar o stress causado pelas imagens que vemos no ecrã.
Mas este é também um filme que vive muito dos pequenos detalhes e das histórias que ficam por contar. É-nos dado a entender a certo ponto que Austin trabalha com o pai mas que aquela não é a vida que quer seguir e que ele está mesmo a pensar sair da cidade com a sua namorada, mas nunca nos é dito qual é o seu sonho ou aquilo que o leva a querer partir. Várias teorias são postas na mesa, tanto por Tommy como por Austin, para explicar os eventos que acontecem durante a autópsia de Jane Doe, mas também nunca chegamos a uma conclusão quanto à verdadeira história da rapariga. André Øvredal leva ao máximo a ideia de que o espectador não é ignorante e de que nem tudo tem de ser mostrado para se contar bem uma história.
Aquele que foi um dos elementos mais interessantes em todo o filme é algo que pode, aos olhos dos mais distraídos, passar despercebido – o rádio que Tommy e Austin mantêm na mortuária. É através do rádio que começam a surgir os primeiros sinais de que algo não está bem: canais a mudarem de repente e uma versão muito sombria da música “Open Up Your Heart and Let The Sun Shine In” a tocar de cada vez que isso acontece são apenas exemplos. Mas o rádio conta-nos mais. É o rádio que nos dá a entender que a noite de inferno vivida pela família Tilden, presa na mortuária depois de uma tempestade, é, basicamente, baseada em alucinações – uma vez que há quatro dias seguidos que fazia sol naquela cidade.
É o fim do filme que deixa um ligeiro gosto amargo na boca. Tudo o que acontece nos últimos vinte minutos do filme parece apressado, com um argumento fraco e uma edição muito fraca, quando comparada com o resto. Apesar disso, A Autópsia de Jane Doe continua a merecer uma grande parte dos elogios que lhe têm sido feitos. Emile Hirsch e Brian Cox aguentam muito bem os papéis principais e têm uma grande química no ecrã, mostrando muito subtilmente que boas relações familiares não são sempre baseadas em concordâncias e sorrisos. O filme pode não trazer nada de novo ao mundo dos filmes de terror, mas certamente não desgraça o género.
A Autópsia de Jane Doe estreia nos cinemas a dia 9 de Março.