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A universalidade limitada do Masculino Genérico

Muito se tem vindo a falar de igualdade de género e na sua urgência, mas o óbvio tende, sucessivamente, a ser ignorado. Por mais insignificante que possa parecer, é num dos aspetos fundamentais à existência e convivência humana que se ergue o principal muro ao progresso nestas questões feministas. 

Fonte: Linkedin

Na língua portuguesa, tende-se a recorrer ao masculino, sem olhar atrás. O uso do masculino genérico – ou neutro – “é uma regra gramatical que nos diz que perante um grupo em que esteja presente um elemento masculino, o grupo deve ser generalizado como masculino”, explica Laura Falésia, consultora de comunicação e diversidade de género e ativista LGBTQIA+.

“Mas a questão não é gramatical”: o exemplo mais claro da queda em tal precipício passa por reduzir a Humanidade ao género masculino, através do termo «Homem» com «H» maiúsculo. “Não há nenhum problema em, num conjunto de copos e cadeiras, dizer para trazer para junto de mim «os» objetos. A questão é quando o género deixa de ser só gramatical e passa a dizer respeito ao género de cada pessoa”, exemplifica Laura.  

Ora, se a espécie humana é constituída por bem mais que um género, para quê ignorar a diversidade que tanto nos é característica, em detrimento do androcentrismo?

“O que não é nomeado não existe”

O uso do masculino genérico na comunicação verbal e escrita – através das quais estabelecemos as inúmeras interações com o mundo que nos rodeia – põe à prova a existência e a resistência feminina; isto numa sociedade que se julga progressista em relação a inúmeros outros assuntos, enquanto, em pleno século XXI, promove a diminuição da mulher (ou a sua anulação de forma disfarçada), através deste tipo de discurso. 

Teimar em operar a língua nestes moldes resulta, invariavelmente, em consequências negativas, sejam elas diretas ou indiretas. Peguemos em exemplos mais práticos. Imagine-se num púlpito a dirigir-se a um vasto e diversificado público. Neste caso, acabaria por se referir à multidão utilizando a expressão «todos», no entanto, tal acabaria por fazer com que mulheres e pessoas não-binárias se sentissem excluídas do discurso, uma vez que o «todos» parece apenas referir-se aos homens presentes no recinto. Agora, experimente colocar-se no lugar de uma mulher que se depara, pela primeira vez, com determinado site e todo ele se dirige ao utilizador/cliente de acordo com o género masculino – acabaria, certamente, por não se sentir incluída. São situações quotidianas como estas que fazem com que pessoas que não se identificam com o género masculino acabem por se sentir desvalorizadas, indesejadas ou sem lugar de fala.

Fonte: UFMG

Há um risco muito grande de invisibilidade destas “minorias”, que nem isso, na verdade, o são. “O que não é nomeado não existe”, salienta; “é por isso que no Portugal de Salazar ou na Alemanha de Hilter se queimavam livros, se torturavam algumas pessoas, e não se escolarizavam pobres, em particular as mulheres.” A ativista explica que os meios que mais contribuem para a difusão e perpetuação deste tipo de discurso são documentos oficiais, “aqueles que dizem respeito aos direitos e deveres de todas as pessoas e que devem dizer respeito a todas as pessoas, por escrito, explicitamente”. Na sua perspetiva, os media poderão ajudar a incentivar o uso de uma linguagem menos excludente, visto que acredita que “a difusão de conhecimento verificado, vindo de fontes fiáveis, é a principal forma de informar com o mínimo de vieses”.

Laura Falésia prevê um caminho longo e sinuoso devido à falsa informação que muito circula por aí, mas acredita que “os media, as escolas e centros educativos poderão ser formados no sentido de compreenderem a questão e de mudar algumas práticas”. É importante “desfazer o preconceito e ensinar ferramentas linguísticas” que auxiliem no combate a esta problemática. 

“Recusarmo-nos a usar novos termos é recusarmo-nos a evoluir”

Ainda que o problema seja fácil de identificar, mudar mentalidades é mais complicado. Uma boa solução, e talvez a que parece mais óbvia à primeira vista, seria – à semelhança daquilo que acontece em outras línguas como o inglês. Os anglófonos, por exemplo, utilizam o pronome «they» para não especificar género, mas, no português, tal ferramenta ainda não existe, apesar de já muito ter sido feito para se tentar chegar perto, através da linguagem de género neutro.

Para que estas ferramentas sejam postas em prática é necessário estar-se recetivo à mudança. Há muita gente que ainda não se mostra preparada, desculpando-se, muitas vezes, com alegações do tipo: «a língua sempre foi assim, por que haveria de mudar agora?» A verdade é que a língua nem sempre foi assim. “Antes de se falar português como se fala hoje, falava-se outras línguas neste território”, é o que Laura costuma contra-argumentar, concluindo que “a antiguidade de uma prática é, poucas vezes, um bom argumento para se continuar a fazer da mesma forma no futuro”.

Fonte: Vecteezy

Segundo Laura Falésia, adquirir uma linguagem que inclua “novos pronomes”, como é o caso de «ile» ou «elu», pressupõe uma evolução que surge de uma tentativa de adaptação a uma nova realidade, sendo necessário nomeá-la para a trazer para o quotidiano: “antes de haver televisões ou internet, esses termos não existiam porque não significavam coisa alguma. Recusarmo-nos a usar novos termos que designam pessoas reais e que respeitam as suas identidades é recusarmo-nos a evoluir”, explica a consultora de comunicação. 

Como alternativa à linguagem de género neutro – que numa primeira análise pode parecer um bicho de sete cabeças – pode-se sempre recorrer ao nome da pessoa para se referir a ela; “um pronome é isso mesmo, um substituto do nome”. Há sempre expressões alternativas para garantir a inclusão de todos os géneros: pode-se, por exemplo, usar «todas as pessoas» em vez de «todos»; «estudantes» em vez de «alunos»; «direção» em vez de «diretor»; «a pessoa que requer» em vez de «o requerente», por exemplo.

Já ao nível das instituições, Laura Falésia considera que “por vezes é preciso pensar em novas estratégias de comunicação externa, outras vezes trata-se de atualizar documentos de trabalho interno” e, para isso, muitas vezes, é preciso dar-se formação não só a quem lidera a instituição, mas também a quem nela trabalha.

É necessário pensar naqueles com quem estamos a comunicar. Se queremos chegar a toda a gente, então precisamos de falar para «todas as pessoas» e não apenas para «todos».

Fonte da capa: G1 – Globo

Artigo revisto por Carolina Rodrigues

AUTORIA

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A escrita e a música sempre estiveram presentes na vida de Bruno. Assim sendo, sempre foi hábito associar as duas paixões e conjugá-las numa só, e a ESCS Magazine foi o propósito perfeito para o fazer. Entrou como redator de Música em 2022, e após um ano, aceitou o desafio de ser o editor no mesmo ramo.

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Apaixonado por contar estórias e dar voz a quem não a tem, Lourenço sempre soube que o seu caminho seria pela área da Comunicação.

Foi na ESCS que combateu a teimosia de que não gostava de escrever e é assim que, atualmente, no último ano da licenciatura em Jornalismo, cede à tentação de se juntar à revista da Escola. Procura, neste novo desafio, alimentar o seu bichinho corretor, uma vez que aqui já pode ser chato à vontade.