Literatura

Admirável Mundo Novo: Utopia incompatível com a vida

Imagine, caro leitor.

Imagine um mundo em que, nas escolas, as crianças são obrigadas a dormir durante um determinado período, enquanto lhes é dada a lição do dia durante o sono.

Imagine um mundo sem partos, sem o momento que qualquer parente diz ser dos mais felizes da sua vida: o nascimento de um filho.

Imagine um mundo em que a concepção de seres humanos é feita em laboratórios.

Imagine um mundo em que é normal as pessoas serem comparadas a uvas, umas de castas “superiores” e outras de castas “inferiores”.

Imagine um mundo em que as “castas inferiores” são colocadas de parte do resto da sociedade e vivem numa “Reserva de Selvagens”. Um mundo em que isso é desejável.

Imagine um mundo em que o único ser que lute pela sua liberdade individual seja apelidado de “Selvagem”.

Esse mundo existe. O seu criador é Aldous Huxley. O seu nome é Admirável Mundo Novo. 

Introdução

Uma noção a ter em conta sobre este mundo é que ele não existe à parte do nosso. Na realidade, ele é visto como uma conceptualização futura do nosso mundo atual, no qual todas as características que conhecemos fazem parte do passado, tendo dado lugar à ordem social, ao bem comum e à paz mundial. 

No entanto, tal tem um preço – o controlo de todo e qualquer indivíduo, desde antes de a pessoa nascer até à sua (sempre previsível e calculável) morte. Por outras palavras, o bem que esse mundo consegue trazer só acontece com a privação dos direitos e liberdades individuais de todos. 

É tudo feito em prol da estabilidade:

Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem estabilidade individual”.

Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo (Livros Brasil, Lisboa, tradução de Mário Henrique Leiria)

Como se sabe, o ser humano, por natureza, não é perfeitamente estável; por isso, Huxley necessitava de retirar a natureza do ser humano (até às suas emoções) para alcançar a estabilidade definitiva.

Mundo de bebés-proveta

Todo este universo é a materialização ao máximo expoente da expressão “uma máquina bem oleada”. A criação de vida, por exemplo, é controlada até ao mais ínfimo pormenor, não há relação entre homem e mulher, mulher esta que nem sequer fica grávida. O embrião está sempre num laboratório. Quando tem fome, é-lhe dado “pseudo-sangue”.

Quando nasce, “o bebé decantado berra, (…) uma enfermeira aparece com um biberão de secreção externa”. 

Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo (Livros Brasil, Lisboa, tradução de Mário Henrique Leiria)

O divino Henry Ford

Creditado como o primeiro a usar a produção em massa a larga escala e com sucesso, Henry Ford é o ser divino do Admirável Mundo Novo. No calendário Ocidental, as datas partem a partir do nascimento de Jesus Cristo. Neste mundo, as datas partem a partir do sucesso de Henry Ford na produção do seu automóvel vanguardista, o Ford Modelo T. São os anos de N.F. (Nosso Ford).

Henry Ford é a única personalidade à qual se permite devoção, porque este mundo, para lá de Ford, é puramente ateu e vê qualquer outra forma de religião como ópio para o povo. 

Efectivamente, a religião é substituída pela adoração à tecnologia, pela eficiente produção em massa e de bens, em Ford foi pioneiro. 

Totalitarismo

Para implementar esta doutrina de controlo total, este mundo passou por uma fase de linchamento a quem se lhe opusesse (uma característica comum a todo e qualquer regime totalitário). Por exemplo, 800 praticantes “da vida simples”, que caracterizava quem lia livros por prazer e interesse, são “abatidos à metralhadora”. 

A oposição à cultura é, de resto, notória: “dois mil fanáticos da cultura mortos com gases”. Para a imposição deste novo mundo, há uma campanha contra o passado, que passa pelo “encerramento dos museus, pela destruição dos monumentos históricos”. Quando o povo não sabe nada do que aconteceu, está mais aberto a ser doutrinado. 

Um exemplo disso pode-se relacionar com o mundo atual. 

Com o Natal à porta, e apesar da inflação e aumento do custo de vida, o consumismo da nossa sociedade deixará de novo, durante um mês, a sua marca. Identificado como uma característica que, em excesso, pode ser prejudicial à vida humana (económica e psicologicamente), no mundo utópico de Huxley, é uma imagem de marca.

Uma das lições ditadas repetidamente às crianças durante o seu sono é cinicamente simples:

Os fatos velhos são detestáveis. Nós deitamos fora sempre os fatos velhos. Mais vale destruir do que conservar. Mais vale destruir do que conservar”.

Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo (Livros Brasil, Lisboa, tradução de Mário Henrique Leiria)

É interessante notar como, partindo de uma peça de roupa descartável, se passa a doutrina que destrói qualquer forma de conservadorismo ou de preservação do passado. 

Estilo de escrita

José Saramago obrigava o leitor a prestar atenção substituindo pontos finais por vírgulas. Huxley atinge o mesmo objetivo, mas obriga quem lê a ter uma concentração ainda maior: ao longo de páginas, expressa pensamento e diálogos que ocorrem ao mesmo tempo, em locais diferentes, mas em parágrafos consecutivos e misturados. Uma forma brilhante de escrever e de transmitir uma sensação de simultaneidade. 

Espero, com este curto texto, ter despertado o interesse nesta obra-prima, que celebrou este ano o seu 90º aniversário. 

Nota: todas as citações são retiradas de uma edição da “Livros Brasil” Lisboa, traduzida por Mário Henrique Leiria.

Fonte da capa: adonisnobrega

Artigo revisto por Bruna Meireles

AUTORIA

LINKEDIN | + artigos

A Música sempre fez parte da sua vida. Após uma iniciação na música clássica, passou para o rock clássico de Rolling Stones e depressa se focou em bandas de hard-rock e metal (sendo Scorpions e Iron Maiden, respetivamente, as principais referências nesses campos). Hoje, gosta de ouvir um pouco de tudo, desde Mozart a John Coltrane, e desde Guns N’ Roses a System of a Down.