Cinema e Televisão

Contamos as mesmas seis histórias há mais de 100 anos e continuamos a querer mais

Como a estrutura da narrativa dos contos folclóricos e dos mitos se repete no cinema

“Gnärus” 

É no sânscrito em que encontramos esta palavra que deu origem ao termo “narrativa”. Saber, ter conhecimento de algo e narrar. Relatar. A narrativa diz respeito à apropriação do mundo à nossa volta e à forma como o ser humano o organiza dentro do seu sentido próprio.

Desde a época de Aristóteles, as histórias passaram a ser contadas em três conhecidos atos: princípio, meio e fim. É entre cada um destes grandes eventos que encontramos a estrutura das histórias que ouvimos, lemos ou vemos. E é desta última que vamos aqui falar, através dos modelos narrativos que levaram à construção das histórias a que hoje assistimos no cinema.

Em 1928, Vladimir Propp lança o seu livro A morfologia do conto onde, através de uma análise estrutural dos contos populares russos, concluiu que existiam 31 funções que caracterizam ações das personagens e que, apesar de não estarem presentes em todos os contos, apareciam sempre pela mesma ordem. Estas funções estariam divididas em quatro atos: 

1.º Ato: contendo as funções de um a sete, onde é apresentado o ambiente da história e as principais personagens, preparando o cenário para a aventura subsequente.

2.º Ato: a história principal começa aqui e estende-se até à função 11, quando o herói parte na busca para conquistar algo. 

3.º Ato: com as funções de 12 a 19 que enfatizam a busca do herói por um método pelo qual a solução para a sua busca possa ser alcançada, através da ajuda de um agente mágico, fator externo ou aquisição de consciência de uma capacidade inata que lhe era desconhecida até então.

4.º Ato: esta última fase é frequentemente opcional, tratando-se das funções de 20 a 31, onde o herói volta para casa, eventualmente vitorioso. É saudado pelos seus feitos e passa a viver num novo mundo, seja ele interior ou exterior.

20 anos depois, Joseph Campbell mimetizou esta narrativa através do livro O Herói das Mil Faces, no qual lança o seu estudo comparativo da estrutura do mito por diferentes locais, culturas e épocas, chegando à conclusão de que todas as narrativas míticas derivam de uma só. Baseada na ideia da jornada do herói, uma aventura mitológica paradigmática dos ritos de passagem definiu esta busca, como o monomito.

Fonte: Go into the story

Segundo a professora, escritora e crítica literária Rita Taborda Duarte no cinema facilmente encontramos tanto funções e personagens com esferas de acção específicas, como uma estrutura interna, que, de uma forma literal ou metafórica, pressupõe uma progressão da acção a partir do conceito da jornada: um herói que parte à procura de algo, vê-se confrontado com uma série de adversidades que deve superar para regressar ao ponto de partida com uma mais valia, tanto para si próprio como para a comunidade em que se vê inserido. 

Através de Campbell e das teorias psicanalíticas Junguianas, mas também referindo Propp e a estrutura da tragédia aristotélica, o roteirista hollywoodiano Christoper Vogler vem defender um paradigma para a progressão da acção na narrativa cinematográfica a partir da noção campbelliana da jornada do herói.

O estudo não é exaustivo, mas de uma forma sintética expomos aqui seis formas diferentes de contar esta jornada, que vem sendo repetida desde a criação do cinema como o conhecemos hoje em dia.

Histórias de Ícaro

São histórias de ascensão e queda vertiginosas onde todo aquele a quem falta realismo e que tenta voar mais alto acaba por ser castigado. São fábulas morais onde o herói se esquece das suas virtudes à medida que ascende, renunciando às suas virtudes e, por isso, deve ser punido como forma de restabelecimento da justiça e indução à humildade. Filmes como Citizen Kane, The Great Gatsby e Scarface são alguns destes exemplos.

Fonte: milobs.pt

Histórias de Orfeu

São viagens de ida e volta ao inferno. Não terminam como a derrota de Ícaro, mas costumam ter finais melancólicos onde o alívio da volta para casa é esmagado pelo peso da experiência vivida, como Orfeu que perdeu Eurídice: vivo, mais sábio, porém triste. Apocalypse Now, Taxi Driver e Schindler´s List são alguns filmes que retratam este mito.

Fonte: amazon.ca

Histórias de Cinderela

Uma personagem, maioritariamente feminina e de origens humildes, enfrenta os mais humilhantes obstáculos e os ultrapassa sem comprometer as suas virtudes até que alcance a maior recompensa de todas, que é o amor, o sucesso ou a felicidade, de alguma forma. Pretty Woman, The Social Network, The Hunger Games e a esmagadora maioria dos melodramas são alguns destes exemplos. 

Fonte: depoisdosquinze.com

Viagens iniciáticas

As personagens destas histórias encontram-se num momento existencial e/ou são jovens e tiveram uma infância problemática, ou têm alguma vivência, mas encontram-se desorientadas e precisam de uma experiência transformadora, como se isto pudesse lhes mostrar o verdadeiro lado da vida. Muitas vezes acaba em tragédia. Grande parte dos road movies inserem-se aqui como Thelma & Louise, Into the Wild e Little Miss Sunshine.

Fonte: usatoday.com

O objeto mágico

É onde encontramos os exemplos mais explícitos da viagem do herói de Campbell onde uma personagem está pacatamente em sua vida quando algo intrigante a tira deste torpor para iniciar uma aventura que mudará a sua vida. Ora vejamos: Indiana Jones, The Goonies e Star Wars.

Fonte: imdb.com

A fórmula blockbuster de Hollywood

Incorpora elementos da viagem iniciática e das histórias de Cinderela: duas personagens encontram-se casualmente, e, posteriormente, são forçadas a se separarem por um terceiro elemento que pode ser um crime, uma viagem ou a formação de um triângulo amoroso. Esta separação obriga a que a protagonista parta em busca da recuperação do seu amor. É aqui que se encaixa a comédia romântica. The Shop Around the Corner, Crazy Stupid Love, When Harry Met Sally… A lista é longa.

Fonte:wikipedia.org

Há um dito muito conhecido, como todos o são, de origem e autoria imemoriáveis: não há nada de novo sob o sol. Mas o mais curioso é que o cinema continua a ter a magia de trazer à luz estas narrativas que, quando bem realizadas, fazem-nos sentir como o herói da história. 

Fonte da capa: La Carreta

Artigo revisto por Lara Alves

AUTORIA

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Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.