De ‘The Shining’ a ‘Doutor Sono’ – A Sombra do Quarto 237
Não é segredo que Stephen King, um dos mais célebres autores do fantástico e do horrífico na história da literatura, odeia a adaptação cinematográfica do seu livro The Shining. No entanto, o filme de Stanley Kubrick, um dos cineastas mais respeitados e influentes do mundo do cinema, é um dos maiores pontos de referência para qualquer amante de terror.
King é, em regra, bastante leniente no que toca às adaptações do seu trabalho, incluindo as mal recebidas. No entanto, o seu ódio face à mais aclamada adaptação de um dos seus livros tornou-se alvo de obsessão tanto por parte dos media como dos seus próprios fãs. De acordo com King, o filme de Kubrick é “demasiado frio”. De facto, muita da obra de King foi alterada na sua tradução para o grande ecrã, sem que tais alterações fossem particularmente necessárias. Kubrick moldou a história à sua própria visão, como qualquer outro autor trabalhando em qualquer tipo de media. Contudo, o resultado não foi apreciado pelos seus contemporâneos, ainda que tenha sofrido uma reavaliação positiva nos anos que se seguiram. É unânime que o clássico de 1980 está longe de ser uma experiência fria, à exceção do sentido mais sensorial da expressão.
Agora, quase 40 anos depois, chega-nos Doutor Sono, a adaptação cinematográfica do romance escrito em 2013, este uma sequela de The Shining. Estabelecida a narrativa – cerca de 40 anos depois do filme original -, Danny Torrance encontra-se agora numa rotina pacata, trabalhando como funcionário num hospício, onde reconforta pacientes moribundos com o seu shine – o nome dado por King aos seus poderes psíquicos. Enquanto, em simultâneo, um culto vampiresco rapta crianças para se alimentar do seu steam – a substância biológica produzida pelo shine.
Mike Flanagan é uma das promessas da década no que toca a terror. Antes de se encarregar de Doutor Sono realizou Hush e Jogo Perigoso para a Netflix – este último sendo também uma adaptação de uma obra de King. Flanagan viu-se imediatamente entre a espada e a parede, sendo que o seu trabalho seria adaptar o romance de King – qual seria a melhor maneira de o fazer, visto que o filme de Kubrick é a versão mais popular da história e é de conhecimento público que King a despreza? Mais ainda, como adaptar uma obra que tem como base um capítulo anterior onde o desfecho é diferente daquele que conhecemos cinematicamente? Não esquecer, ainda, que tem como personagem principal Danny Torrence (a criança de The Shining) e ligações diretas aos acontecimentos do Hotel Overlook que impossibilitariam a credibilidade se fossem ignoradas. O resultado é algo moldado através de uma fusão entre as duas faces da moeda, e King não podia estar mais feliz.
Aliás, a narrativa de Flanagan funciona de uma forma tão orgânica que, ao que parece, levou King a apreciar o filme de Kubrick com outros olhos. Tendo visto os dois filmes, é difícil não o fazer. Doutor Sono não aborda os acontecimentos do original de uma maneira ativa. São recriados alguns dos seus momentos mais icónicos e exploradas as suas consequências psicológicas, mas o clássico de Kubrick mantém-se intacto na sua íntegra, sendo-lhe apenas adicionada uma nova camada narrativa; um ponto-parágrafo na sua realidade que não se encontrava visível há um mês. Dito isto, parece algo tanto derivativo como intrusivo, mas não o é.
A verdade é que Doutor Sono está longe de ser uma sequela linear do filme de Kubrick. Nas suas bases encontram-se sensibilidades completamente diferentes. A psicose interna de The Shining é substituída por um world-building mais fantástico no filme de Flanagan, com maior enfoque no estabelecimento de uma realidade alternativa do que propriamente na demência do subconsciente. Mas o que é mais interessante é, de facto, a abordagem de Flanagan face aos lugares-comuns do género – a verdade é que todos nós vemos filmes de terror como um escape violento. A própria ideia do filme de terror baseia-se no ato de experienciar um pânico que não queremos ter na vida real; ou melhor, no ato de ver alguém a experienciar esse mesmo pânico. Em suma, vemos filmes de terror para ver pessoas serem brutalizadas até à morte, das formas mais inimagináveis. Uma das melhores cenas de Doutor Sono assenta na forma como Flanagan inverte o esquema e coloca os antagonistas na posição penosa da equação. Ora, é infinitamente mais satisfatório quando tal acontece – o medo transforma-se em alívio e o pânico forma triunfo.
Quanto à inevitável visita ao mítico Quarto 237, é quase nostálgico. Não se perde muito tempo por lá, mas o Hotel Overlook foi completamente recriado num sound stage, e os resultados são arrepiantes. A figura de Jack Torrance é ressuscitada por Henry Thomas, numa imitação de Jack Nicholson que é, no mínimo, incomodativa. É estranho visitar um local que foi outrora tão assustador, de uma forma tão retrospetiva. É como visitar uma casa antiga, se ignorarmos o facto de que essa própria casa nos tentou, outrora, matar. Os fantasmas do Overlook não atravessam paredes, mas partem portas com machados e deixam um after-taste a melancolia fabricada.
Destaque, ainda, para a panóplia de novas personagens – especialmente as de Rebecca Ferguson, no papel de antagonista, e Kyliegh Curran, no papel de protegé de Danny Torance. Há quem diga que a substância de uma narrativa confrontacional é diretamente proporcional ao seu antagonista. Ora, diga-se de passagem, que esta é uma narrativa com substância.
Artigo revisto por Bruna Gonçalves