Opinião

Despedidas

Pensar no fim de um ciclo, como acontece depois do Natal, é muitas vezes uma tarefa difícil. É sempre certo que o dia 31 de dezembro chega e com ele vem aquela inevitável retrospetiva de tudo o que vivemos durante 365 dias, das promessas que foram feitas exatamente há um ano e de tudo o que foi, ou não, cumprido neste período que agora termina. Esta altura sempre trás a sombra da finitude, e com ela a certeza das despedidas. 

Assim como quem pensa que a passagem do ano tudo muda, historicamente, o ideal romântico pregava uma atitude de isenção e neutralidade, a apatia da aceitação e colocava a solução como um gesto único: alguém morreria ou nasceria e tudo ficaria resolvido, algo novo surgiria para mudar tudo de uma só vez, um milagre, um raio divino. Há ainda quem creia que a partir da meia noite de 1 de janeiro tudo se vá resolver. Mas quando esta ideia acaba por ser frustrada porque é um ideal saturado, pouco verosímil e potencialmente falho, o sujeito crente do absurdo sucumbe-se na melancolia.
Desta forma, os rituais de encerramento podem ser de grande ajuda na hora de simbolizar eventos e acontecimentos traumáticos. E, entre términos e traumas, a travessia torna-se possível através da simbolização, elaboração mental e sentimental do que aconteceu.

Pensar caminhos de saída, resolução e até de esperança pode ser uma direção a ser tomada e que não erra pela opção fácil de um dos mantras da fuga da realidade: daqui para frente tudo vai ser diferente. Fiar-se nisto pode ser o caminho mais fácil para uma desilusão repartida ao longo de mais um ano. Por outro lado, refletir criticamente sobre onde se errou, o que se aprendeu e o que fazer com aquilo que ficou leva a um amadurecimento emocional e intelectual que potencialmente faz com que se vá buscar aquilo que ficou para trás e refazê-lo de maneira mais sensata e equilibrada. Não é preciso jogar fora algo que se quis e pelo qual se lutou. 

Na psicanálise, Freud elaborou o princípio da alternância entre o sumiço e o ressurgimento de um determinado objeto que se gosta e que se quer ter por perto ao observar o comportamento do seu neto diante da presença e ausência de um determinado brinquedo. Ainda hoje em dia, este ‘vai e volta’ é muito importante para não correlacionar necessariamente a ausência com o abandono. E fazer um ‘até logo’ menos doloroso porque em algum momento vai haver um adeus definitivo que vai precisar daquele simbólico outrora aprendido para que este momento seja melhor aceite. Por isso é importante saber dizer adeus. O que pode ser dito, escutado, a história que se fica apesar do que acabou de ir embora. Saber fazer ligações é tão importante como saber desfazê-las. 

Mas o que colocar no lugar daquilo que foi embora para não sofrer? Este exercício não tem nada a ver com positividade tóxica, mas sim reconhecer que o nosso desejo é flutuante, como alguém que deixa um curso de medicina a meio para enfim reconhecer que o que queria na verdade era ser músico. Para se chegar a este ponto e olhar este novo espetro do desejo, é preciso encarar a perda, a frustração. É verdade que há perdas irreparáveis, especialmente aquelas ligadas aos nossos entes queridos, para as quais pode ser redentor pensar que nem sempre tudo terá um sentido. Ainda que o sentido da perda traga algum conforto, tentar compreendê-lo obsessivamente pode levar a uma neurose ainda maior do que aquela que existia antes desta tentativa.  

Na mitologia grega, Orfeu recebera ordens expressas para não virar para trás quando se encontrasse com Eurídice. Entretanto, ele faz exatamente o oposto, o que leva à perda da sua amada. Que razão teria ele para o fazer se conhecia a pena? Terá sido o homem ou o poeta a fazê-lo? Ou Eurídice a pedi-lo? É tentador vasculhar os recônditos da alma na busca do sentido de um momento que gera um adeus. Mas não há um sentido único. Talvez nem a própria razão o conheça.

É verdade que um fim repentino causa um aperto e uma angústia que nos faz questionar todos os por quês e tentar encontrar algum consolo numa eventual explicação. “O que eu fiz para merecer isso?” ou “porque estou a ser castigado?”- este pendor de culpa pode levar a uma recuperação ainda mais difícil e o luto daquilo que se perdeu pode não acontecer ou levar muito tempo para ser elaborado, provocando ainda mais dor pelo caminho. 

Dar tempo ao tempo, aceitar as responsabilidades de cada parte pelo fim do que acabou é fundamental. Se era importante, vai levar tempo. Quanto maior o compromisso, maior o luto, sendo a autocompaixão e a empatia dois elementos imprescindíveis para que este processo cicatrize ao invés de continuar como uma ferida latente. 

Para sofrer menos e tapar o buraco que ficou, o ego preguiçoso muitas vezes vai recorrer a substituições. Citando Lacan: “cada um alcança a verdade que é capaz de suportar”. Claro que ninguém quer ficar deprimido, mas depois de muita elaboração mental, perguntar a si próprio se o trauma foi superado ou reprimido é essencial para saber o quanto ainda tem de se caminhar até chegar ao oásis do bem-estar. 

Proteger a psique constantemente,  impedindo que se viva e compreenda um processo pode levar à recorrência de um estado melancólico e em última instância à depressão. A psicanalista Maria Rita Kehl, em seu livro O Tempo e O Cão diz que “desde o romantismo o melancólico é aquele que perdeu o seu lugar junto ao outro”. Este estado é pungente quando se fica preso, identificado com a sombra do objeto perdido, como num luto congelado. Sabe-se que algo se perdeu, mas não o que se perdeu. A depressão já é uma forma mais agravada deste sentimento, implicando um diagnóstico clínico e não a banalidade do uso do termo no cotidiano quando simplesmente se está triste. 

Então, como dizer adeus? Como não sofrer com uma partida de algo que no fundo não se queria perder?

Criar um espaço através de um objeto simbólico dentro da narrativa pessoal de cada um e levantar um autoquestionamento sobre ‘o que fiz comigo e o que fiz com o que fizeram comigo’ é o ponto de partida para que as emoções circulem e se busque um desenlace interno. Um trauma que não passou e se repete acaba por acontecer por não se conseguir esta elaboração. Afinal de contas, o inconsciente não é o passado, é o que não passou.

Ritualizar a despedida pode ser um processo que permite à mente alguma compreensão acerca daquele sentimento. Tomar uma parte, momento vivido, gosto, gesto, causa ou missão do que ou quem se foi e trazer para dentro de si pode ajudar no processo de desapego. Pegamos num traço e carregamos uma lembrança. Uma amiga guarda a trança da mãe como uma recordação afetuosa. Por outro lado, quando este processo não é feito, o luto perdura e a sombra do objeto se recaia sobre o sujeito uma vez que a identificação é tão grande que o sujeito simplesmente se perde. É possível sair do luto, investindo na libido enquanto energia psíquica, como conceptualizado por Jung, e aceitar que a perda acaba por gerar algo de bom.

Sem reconhecer o luto pessoal e o reconhecimento de que somos todos humanos e, portanto, com defeitos e qualidades, acaba-se por manter um estado de infelicidade que ultrapassa o pessoal e afeta o ‘eu’ na coletividade. Aliás, em Uma questão de Morte e de Vida, livro que Irvin Yalom escreveu com a sua mulher Marilyn enquanto ela lutava contra um cancro terminal, o prólogo inicia-se com a ideia de que “o luto é o preço que pagamos por ter coragem de amar os outros”.

Vale lembrar que ao longo da vida, muitos cortes foram feitos naturalmente: largar o colo da mãe, as fraldas, a escola, a casa dos pais…todo um universo familiar que ao ser perdido levou ao encarar de um mundo desconhecido, mas que proporcionou a nossa evolução. Invariavelmente todos já passamos por estes pequenos lutos e só com esta consciência é que continuamos a viver. 

É importante fechar um ciclo para se abrir outro. Encarar com sensibilidade e humanidade as dores do que se perdeu, saber que nem tudo depende apenas da sua decisão e, especialmente no que toca a relações, reconhecer e partilhar as responsabilidades pelo seu término. Apagar ou ignorar memórias que pelo bom e pelo mau nos formaram não traz qualquer solução. Apenas aquilo que ficar, depois de processado, compreendido e integrado num lugar de compaixão e gratidão será utilizado não para um começar de novo, mas antes, para um recomeço.

Fonte da capa: Wikipédia

Artigo revisto por Ana Sofia Cunha

AUTORIA

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Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.