Editorias, Opinião

“Desvida”

Sim, vim falar sobre a morte. Pareceu-me demasiado dramático ou mórbido colocá-la como título e por isso permiti-me inventar uma espécie de sinónimo do termo (poderá dar jeito nos recentes debates sobre a eutanásia, para aqueles que a defendem: “eu não defendo a morte, mas sim a desvida…” soa menos agressivo, talvez cole).

Quanto à morte, não me surpreende nem a temo. É um reflexo indivisível da existência. “Eu tenho medo de morrer”. Ouve-se vezes e vezes sem conta e tem tanto de real como de estupidamente irrealista. É o único facto efectivamente provado, irrevogável. Medo de uma inevitabilidade crónica não é mais que fechar os olhos aquando de uma cena de um filme de terror. Apesar de instintivamente proteger, não passa de uma ilusão permitida pelo nosso subconsciente.

Eu não tenho medo de morrer, mas sim de nunca ter realmente vivido, e penso ser essa a verdade escondida pelo resto das pessoas. Não é a morte em si que assusta, mas a impossibilidade de continuar, de finalmente ser feliz, de estar em paz, de não se deixar levar por quezilas insignificantes, de não ficar preso na raiva ou no azedume do ódio. É isso que nos assusta. O facto de adiarmos a vida até a um ponto de não retorno. Dizermos que amanhã vai ser melhor, ter esperança. Esperança… é a maior e mais cobarde forma de desculpabilização humana: deixar em mão alheia o nosso caminho, largando o volante e fazendo figas para que chegue ao destino certo. Palavras como o destino são tão perigosas.

Muitas vezes, o que é expressado não é o medo da morte em si mas o de morrer sozinho. Esta forma de morte solitária (como se houvesse outra) é naturalmente temida pelo comum dos mortais. Não a temam, pois também ela é inevitável. O receio prende-se com o tempo antes, nunca com o último agora. Mais uma vez me demarco: o que me faz tremer é uma existência abandonada dos outros, uma velhice unitária prorrogada pelo tempo e apaziguada pela morte. A verdade é só uma: o último suspiro será sempre o nosso, o último vislumbre da vida será egoísta, de nós para nós, nunca partilhado.

O legado é outra das questões que se associam inevitavelmente à morte. O que deixamos de nós é efetivamente nosso? Só deixamos mesmo de existir quando a última pessoa que se lembra de nós desaparece? Na minha opinião não há respostas certas ou erradas, trata-se simplesmente de escolher a perspetiva que mais nos apazigue o espírito.

Eu não sou religioso, pelo menos não da forma que muitos o são, e portanto estas questões ganham sobremaneira importância. Movendo essa discussão (religião vs. Fé) para outro tempo que não o presente, o facto de descartar a vida após a morte força-me a questionar, arduamente, o fim “real” da minha existência neste mundo. Resumindo, será a minha essência aquilo que penso/sinto ou o resultado da minha ação que deixo nos outros? É esta a questão.

E porque é que afirmo não haver respostas certas? Porque apesar de, teoricamente, se estar a estabelecer o que fica de nós após a nossa partida, na realidade é apenas uma forma de aceitarmos melhor o nosso fim. O nosso legado “post mortem” só nos interessa e apoquenta enquanto estivermos vivos! A incompreensão por parte do cérebro perante o desconhecido leva-nos a criar estes receios, como se fosse imprescindível deixar algo além de nós, seja legado sanguíneo ou profissional, utilizando-o como luz para iluminar a escuridão e encontrar a tão desejada paz de espírito (o que quer que isso queira realmente dizer). O facto é que, a partir do momento em que o coração bate pela última vez, nada disso terá qualquer tipo de importância: a morte deixa de importar aquando da nossa própria morte. Parece tão óbvio, mas não deixa de ser fascinante: o “além” só existe efetivamente no aquém.

Concluindo, e tentado não soar a todos os livros de autoajuda/guia espiritual na forma literária, tentem ser inteiros hoje e não esperar que o amanhã eventualmente vos resolva a ausência, o espaço que todos tentamos desesperadamente preencher.

Apenas um homem.

O João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.