Entrevista a Flávia Reis
Todos nós temos aqueles livros que lemos ao crescer e que nos marcam; livros que nunca vamos esquecer, que guardamos com carinho no coração. Flávia Reis está a marcar a nova geração de leitores. Nasceu em São Paulo, em 1975, e, além de escrever, trabalha em Direito, é pesquisadora, e está actualmente a fazer o Mestrado em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, na Universidade de São Paulo. Os seus livros são ricos em conhecimento, curiosidades, aventura e beleza. A ESCS MAGAZINE falou com Flávia, que nos contou um pouco mais sobre si mesma.
Quando e como começou o gosto pela escrita?
Começou com exercícios nas aulas de linguagem, no começo do ensino fundamental, no qual a professora dava lições pedindo para formar frases. Forme frase com a palavra “dia”. A maioria das crianças escrevia: “ O dia está de sol.” Ou: “O dia está chuvoso.” Eu escrevia: “Naquele dia, enquanto as pessoas ainda dormiam, lobos rondavam a casa…”. Eu gostava muito de formar frases, e elas eram complexas; gostava de pensar palavras, criava personagens, dava nomes e inventava ações para eles.
Porquê livros infantis?
Aqui no Brasil, apenas o livro “ De Vários Jeitos” é considerado para o público infantil. Os demais – “Bernardo e o Enigma das Amazonas”, “Bernardo e a Princesa de Cristal”, “ Os Perguntadores da Garrafa” – são para o público classificado como infantojuvenil, para leitores fluentes entre 9 e 12 anos. “Tempo de Beijar” está para o público de 12 a 14 anos e é classificado como um livro juvenil.
A classificação da obra e do público a que se destina tem um critério muito subjetivo no mercado mundial. Há livros infantis, infantojuvenis e juvenis que agradam a leitores adultos, e livros de adultos que podem agradar ao público juvenil, por exemplo. O formato da obra, a sua cor, a capa, a sua proposta, o marketing é que acabam “rotulando” seu público.
Pessoalmente, tenho inclinação para escrever narrativas com personagens e tramas de aventura, porque estas me envolvem enquanto escrevo, fazem-me querer escrever, como é o exemplo dos “Bernardos” e “Os Perguntadores da Garrafa”. Acho que esse tipo de história e a forma da linguagem são atrativos para o leitor “mirim”, pois a criança e o jovem estão mais abertos para a recepção dessa natureza; entretanto, talvez também um adulto aberto desfrute desse tipo de leitura.
Qual é a sua principal fonte de inspiração?
Antigamente eu combatia o termo “fonte de inspiração”, porque na verdade o que ocorre no processo de escrita, para mim, é mais uma espécie de “transpiração”, é como doar o suor para as frases, elaborá-las como se estivessem a fazer uma grande ginástica.
No entanto, descobri que para “transpirar” é preciso “inspirar”, “nutrir-se”, também. É isso que ajuda os batimentos cardíacos, ajuda a existir.
Aquele que escreve não pode inspirar apenas o oxigénio; inspira o cheiro de uma folha de papel, um envelope em branco, inspira a atendente do correio que pega sua carta para postagem. Você observa o seu crachá e descobre que ela se chama Filomena e seu jeito de colocar o selo no envelope é um jeito diferente, delicado; ela usa um pincel, como se estivesse pintando e pinta com uma cola, onde irá um selo que tem uma árvore desenhada. O selo, a cola, aquela árvore, sua letra, viajarão para onde aquela carta for.
Não é apenas a vida: a morte também é uma fonte de inspiração. Um dos meus estudos que aprofundei na pós-graduação foi o assunto sobre a morte para a literatura juvenil: como ela é tratada, quais são os tabus, as suas provocações e reflexões.
Sente a influência dos seus filhos nos seus livros? Ou, pelo contrário, sente que são os livros que têm alguma influência na formação deles?
Não sinto diretamente influência dos meus filhos nos meus livros. A minha experiência com a escrita é bastante voltada para a introspecção, me sinto uma ostra. Acho que meus livros também não influenciam na formação dos meus filhos diretamente. Talvez o que os influencia seja o meu jeito de cuidar, de falar, de pensar e agir, de brincar de olhar as coisas. Creio que isso interfere mais na formação deles do que propriamente meus livros e seus conteúdos.
Qual é a opinião deles sobre as suas histórias?
Não sei. Nunca perguntei! (risos). Marília ainda tem 5 anos, portanto para ela “De Vários Jeitos” é o único que atrai, pelas imagens, pelo espelho. Quem é ela? Como ela se enxerga? Ela sorri quando vê o porco. Sorri quando vê minha foto na página final porque sabe que eu estou lá. Apenas isso.
Artur, de 10 anos, leu “Os Bernardos”, leu “Os perguntadores da Garrafa” e não leu “Tempo de Beijar” (ainda). Ele gostou das aventuras; entretanto, não fiquei interrogando sobre os detalhes do seu “gostar”. Ele, como um garoto prático e direto, ateve-se apenas ao “sim, gostei”. Bastou para mim.
Quais são os seus projectos relativamente à escrita? Teremos um livro seu em breve?
Lancei recentemente “Tempo de Beijar”, pela Callis Editora, que é um pequeno diário com doze pequenos contos do universo de uma menina sem nome de 12 anos. Tem uma articulação de narrativa poética e um cuidado com a linguagem que demandaram bastante ginástica de escrita. Seu título ainda me perturba. As historinhas não.
Atualmente, estou trabalhando em “Bernardo e o Mistério dos Gigantes”, também para a Callis. Tenho 9 capítulos escritos, mas exige muita pesquisa e toma tempo, pois falará sobre o universo da arqueologia e paleontologia brasileira e se passa em Ouro Preto e Lagoa Santa, em Minas Gerais. Tem personagens fictícias e também personagens da história, como o dinamarquês Peter Lund, que aqui viveu e morreu, fazendo escavações e explorando as cavernas mineiras. Bernardo vai se aventurar nesse universo.
Quais são as suas figuras de referência na área de literatura? Houve algum autor em específico que a tenha influenciado?
Gosto muito de Machado de Assis, que tem um jeito de escrever dirigido ao leitor, conversando com ele o tempo inteiro – que é um jeito que me agrada bastante-, e acho que transfiro um pouquinho para minha escrita.
Monteiro Lobato é a alma do meu aprendizado, minha influência por narrativas de aventura com certeza vem dele. Lobato me surpreende sempre.
Atualmente, há uma autora contemporânea, Lygia Bojunga, que eu admiro e a qual escolhi como objeto de estudo em meu projeto de mestrado na Universidade de São Paulo, pois ela trouxe para suas narrativas temáticas considerados tabus para a literatura infantil e juvenil, como é o assunto da violência, do suicídio, da morte. Todo este conteúdo me comove.
A quem tem o sonho de escrever, que conselho daria?
Transpire! Trabalhe cada frase como se ela fosse a mais importante. Não tenha medo de cortar excessos – e eles existem, como ratos invasores. Lembre-se da Rainha de Copas em “Alice no País das Maravilhas”: “Cortem as cabeças!”. Portanto, corte, delete trechos. Não tenha dó nem piedade do texto. A primeira frase do livro está no terceiro parágrafo. Ela precisa ser sedutora. Tem o poder de agarrar aquele que lê e lá permanecer. Do contrário, seu texto será abandonado.
Qual foi o livro que mais a desafiou até agora?
“OS PERGUNTADORES DA GARRAFA”. A editora Moderna propôs que eu escrevesse um projeto que tratasse de filosofia para crianças e jovens. Portanto foi um livro de encomenda. Por isso, tive de imergir neste universo, estudar muito, fazer pesquisar e criar uma história que eu pudesse considerar agradável sobre o assunto. Além disso, a narrativa está toda no tempo presente, o que dá um certo trabalho para garantir a sua fluência e tem intersecções de tempo e espaço – outro trabalho grande. Portanto, foi um desafio.
No final dos livros, há uma secção de curiosidades sobre elementos mencionados na história, desde nomes, a locais, a acontecimentos; a escrita envolve muita pesquisa?
A minha escrita, COM CERTEZA! Todos os meus projetos têm esta característica. Por ser algo que é curioso para mim, tenho imenso prazer em fazê-lo, então quis compartilhar com os leitores curiosos também, e assim acho que demarquei o meu estilo e produzi uma espécie de assinatura própria para meus trabalhos.
Como surgiu Bernardo, a personagem central? Há alguma história por detrás desta personagem? É inspirado em alguém em especial?
Certa vez, viajei com minha família para a região da Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro, e escutei durante a viagem que existia um Palácio de Cristal na cidade de Petrópolis. Eu tinha 10 anos. Saber sobre isso foi marcante para mim. Afinal, existia ou não um Palácio de Cristal? Como, quando? Se no Brasil havia matas e índios? Um Palácio de Cristal? Não podia crer.
Implorei a meu pai que me levasse para conhecer, mas nosso roteiro era outro e não fomos. Dessa frustração, desse “não poder” visitar o Palácio de Cristal naquele momento, eu o imaginei. Foi assim que escrevi o que seria o primeiro mote da história, em 1985.
A personagem inicial se chamava “Kammar”, inspirado (olha a inspiração aí, gente!) num conto de literatura oriental que minha mãe me contava quando eu era pequena. Todo um clichê se formou em meu texto, um herói típico dos contos antigos que eu escutava – aqueles perigos enfrentados para conseguir a donzela amada, passar por provas difíceis.
Tempos depois, quase vinte anos se passaram, decidi repensar a jornada desse texto, pois havia sido um marco para mim. Afinal, aquela pequena “arte”, se é que se pode chamar assim, havia surgido de uma frustração, daquilo que não vi, daquilo que não experimentei.
Decidi transformar totalmente o texto e a personagem: ela seria não um herói ou um anti-herói, mas um quase-herói – Bernardo é desastrado, muitas vezes inseguro, curioso, aberto. Desta forma, seu olhar “estrangeiro” sobre o Brasil, no Final Império, era o que me importava, para mostrar lances, descobertas e ideias desse tempo de que o público quase não fala, ou desconhece.
Assim, inseri cenários que me interessavam por serem inusitados e pouco discutidos, além de captar um momento histórico muito importante, demarcando novo tempo e novo espaço. E assim tudo começou.
Como consegue conciliar a sua profissão, a advocacia, com a escrita?
Atualmente considero que tenho duas profissões: A advocacia permite que eu tenha mais liberdade com horários e normalmente ocorre às tardes. A literatura acontece quase sempre de manhã. E isso tem uma certa disciplina quando estou imersa em um projeto.
Sente que as duas partes se interligam? Que uma parte ajuda ou influencia a outra?
O Direito existe para colaborar com as problemáticas da natureza humana, e isso tudo está na Literatura. Tudo isso pode nutrir aquele que escreve. O exercício da escrita serve para a advocacia e serve para a literatura, tem o poder de ajudar a expor conflitos e buscar resoluções ou não. Portanto, para mim tornaram-se complementares.
Prefere dedicar o seu tempo à advocacia ou à escrita?
O tempo. Ah, o meu tempo! Tenho considerado assim:
Na advocacia eu só escrevo: escrevo peças jurídicas contando históricos, escrevo defesas, réplicas, recursos; e isso é escrita também, porque requer envolver o juiz. Convencer este “digníssimo doutor leitor” do que se escreve ali na petição, exige, às vezes, eloquência; às vezes, moderação; às vezes, ataque; às vezes, defesa; às vezes, diplomacia.
Na literatura acontece o mesmo. Logicamente, muda-se o assunto, muda-se o leitor, a história, o estilo, truques de escrita, enfim, toda a arte.
Por enquanto, gosto de me sentir útil como advogada e gosto de me sentir útil como autora, sem garantias de que tudo isso faça alguma diferença para o mundo, apenas para o meu tempo.
Tem algum “ritual”, algum hábito, no momento de escrever?
Como escrever ativa minha adrenalina, gosto que seja sempre de manhã, porque se for à noite eu não consigo dormir, depois. Começo cedo, de preferência, em silêncio, e vou até a hora de almoço. Em volta de mim gosto de que tudo esteja aberto. Tenho sempre uma caixa para cada projeto, com textos, recortes de jornal, impressões da internet, livros, dicionários; tudo precisa estar aberto ao meu redor, mesmo que eu não use. E tenho uma bússola! Fica do lado do meu notebook. Quando não sei para onde seguir, eu pego a bússola e fico olhando pra ela, divagando!
Para finalizar, como se sente em relação ao percurso que fez até agora?
Cheguei à conclusão de que o percurso trilhado aconteceu por vontade de escrever e pela prática adquirida ao longo do tempo com a escrita, que acabou desenvolvendo meu estilo.
Embora meus projetos sejam direcionado para todos, acaba não sendo para todos! Quem gosta? Professores e estudantes de ensino fundamental. As capas são baratas para viabilizar a compra, o conteúdo dos meus projetos contém assuntos interdisciplinares. Entretanto, como disse no começo desta entrevista, tudo isso é subjetivo demais no mercado editorial.
Se formos filosofar, chegarei à conclusão de que nada disso importa; importa mesmo é meditar com “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”.
AUTORIA
A Inês Rebelo tem 19 anos e está no primeiro ano de Jornalismo.
Começou a ler com 4 anos e a escrever as suas criações com 9, sendo que foi sempre esta a sua grande paixão. Fez teatro durante oito anos, gosta de ler e, embora não interesse a ninguém, tem três tartarugas. Também gosta de cantar, mas para isso não tem muito jeito. Na ESCS MAGAZINE integra as equipas de Correcção Linguística e de Literatura, e escreve com o Antigo Acordo Ortográfico.