Literatura

Fernando Pinto do Amaral “Sem as palavras não sou nada, mas as palavras também dependem de mim.”

Para Fernando Pinto do Amaral, o romance nunca irá morrer, por muito que haja quem fale nisso. Considera que a medicina e a literatura não são assim tão antagónicas, que a poesia lhe surge sempre inspirada por uma “pulsação de vida”, e que, para se escrever, temos de “sair de nós mesmos”. Fernando Pinto do Amaral é o típico “homem dos sete ofícios”; traduz, ensina, colabora com jornais e revistas, fez crítica literária, é comissário do Plano Nacional de Leitura. E, acima de tudo, escreve. Obsessivamente, até. Como o próprio confessa, é muito de obsessões.

Fernando Amaral

Encontrámo-nos na Faculdade de Letras, depois de um congresso sobre Surrealismo em Portugal, no qual participou. Fomos para a esplanada de um café da faculdade, e entre cigarros e pausas para ouvir os aviões passar, Fernando falou de literatura, da vida e da inseparabilidade das duas coisas.

 

Tem uma relação com as palavras mais poética que prosaica… porquê? O que lhe diz a poesia?

A poesia… A poesia faz parte de mim. Digamos que, pouco a pouco, foi fazendo parte de mim e hoje, quando olho para trás, e até para o próprio dia-a-dia, quer na poesia dos outros autores, a poesia lida, mas também na minha própria, sinto que não poderia viver sem isso. Mas ao mesmo tempo, digamos que eu funciono por surtos, por fases, não sou daqueles poetas que tem aquela disciplina de todos os dias se sentar a uma mesa ou de achar que tem de escrever um poema, ou ter a sorte de um poema lhe surgir a partir de qualquer coisa. Pode surgir a partir de qualquer coisa, mas eu sou de surtos, sou de fases, muito claramente.

Então tem fases em que fica sem escrever nada.

Sim, exactamente. E depois tenho fases em que escrevo com alguma obsessão, mesmo. Preciso de escrever.

Traduziu Borges, Baudelaire. A sua paixão pela poesia também se manifesta naquilo que traduz?

Sim. A tradução é um exercício, uma ginástica que me faz bem e de que gosto muito. Hoje em dia, pratico pouco, porque tenho estes trabalhos de escritório, estou ligado a estes cargos que estou a ocupar, não é e, portanto, toma-me mais tempo, daí ter menos disponibilidade para a tradução. Serve de ginástica, de manutenção para a língua. Quem escreve nem sempre tem maneira de desentorpecer a língua, e a tradução é uma forma de a desenferrujar, de a ginasticar. Parece que é um trabalho secundário, auxiliar, mas é muito importante porque nos põe à prova. É um treino constante.

Enquanto escritor, é difícil passar a mensagem do poeta que está a traduzir? É difícil não colocar um pouco de si?

Eu tento passar a mensagem do poeta que estou a traduzir, não estou a pôr-me lá a mim próprio. Na língua, nas soluções que eu encontro, em termos de palavras mesmo… Bem, na escolha dessas palavras e o conjunto do texto, a harmonia, o ritmo, as sílabas, nessa escolha Eu tenho de estar ali, claro. Agora a mensagem que o autor tenta transmitir… eu quero que ela seja preservada, respeitada, isso sem dúvida. Há ali um compromisso. Na maior parte das vezes, ficamos próximos de passar a mensagem, mas nunca se consegue exactamente. É sempre melhor conhecer a língua original.

Sempre escreveu?

Digamos que escrever a sério, escrever já com um bocadinho de vontade de mostrar a alguém, e de publicar, de sentir “não, há aqui qualquer coisa que se calhar é capaz de ter algum interesse”… Isso foi só mesmo quando entrei para a faculdade. Andava ali naquelas crises existenciais normais dessa idade, dezassete, dezoito anos. Foi por aí, aí realmente já estava a escrever com essa vontade. E eram coisas que, na maior parte dos casos, foram deitadas fora, ou guardadas para não serem publicadas. Por acaso, de vez em quando, surgia-me assim uns poemas que já tinham alguma maturidade, e esses, eu já podia aproveitar. Mas eram um em dez ou vinte.

Modéstia.

Não, não. Sabe, a verdade é que no geral somos muito influenciados pelos autores que estávamos a ler, passamos por fases variadas, e nem sempre essas fases podem ser interessantes para os leitores. Portanto eu achei que não devia publicar nunca esses textos de juventude. Eu desconfio de que os escritores, e os artistas em geral, quando são jovens, são muito como as rãs e os girinos, passam por umas metamorfoses, têm ali várias fases, que normalmente vão cessando, mas com o tempo. Nós vamos mudando de pele; a partir de uma certa altura, a pele é a mesma.

Começou a escrever com mais vontade na altura de entrar para a faculdade. E, no entanto, começou por estudar Medicina. Como se dá essa passagem para a Literatura? Parece um tanto antagónico…

Parece antagónico, mas não é assim tanto, porque a Medicina também estuda o ser humano e eu sou interessado por tudo o que é do ser humano. O que é humano interessa-me e a medicina interessava-me por isso. Mas depois fui verificando que não tinha muita vocação, e também porque a medicina hoje em dia está muito virada quase para uma engenharia, para mecanismos muito físicos de hidráulicas, de tubos, de coisas que se metem e que se tiram. A mim interessa-me mais o lado misterioso do ser humano, o que há para decifrar, para descobrir. Aquilo em que a medicina se tornou, que é muito técnico, com muitos aparelhos… depois começou-me a desinteressar. E na realidade eu nos tempos livres o que fazia era ler, escrever, ir ao teatro, ir ao cinema, estar com pessoas ligadas a essas áreas… E então acabei por mudar de curso. Mas não foi tempo perdido.

Há arrependimentos nessa escolha? Algum saudosismo?

Assim um arrependimento muito concreto, não. Há alguma nostalgia, isso sim. Mas, quando fico nesse estado nostálgico, quando tenho uma espécie de surto, de fase em que me interesso mais por esse tipo de coisa, tento actualizar-me em relação a algum assunto mais científico.

E existe um “eu” das ciências, naquilo que escreve?

Existe, existe. Sabe, existe uma formação de base que por mais que nos queiramos depois já nunca sai de nós. Ter feito ciências e ter feito letras depois, ter as duas coisas, ser ambivalente, como aqueles ambidextros que são canhotos e aprendem tudo com a direita… Isso é bom porque, apesar de eu ter uma percepção do mundo que é evidentemente muito virada para as humanidades, a minha formação de base, o modelo de ver o mundo, o método científico, teve e tem muita importância para mim.

Tem uma vida muito virada para a literatura, para além do ensino, da escrita. “O que importa é não parar”, como se costuma dizer?

Sim, sim. Porque a literatura faz parte da vida e eu gosto muito de ligar a literatura à vida. E é uma arte que não está parada no tempo, nem corre o risco de chegar a um impasse. Havia quem falasse na morte do romance, na morte do autor… Isso nunca vai acontecer. Isto porque o próprio real, a realidade das coisas, evolui de tal maneira q a literatura também se renova por causa disso, à medida que a vida, ela própria, se vai renovando. É evidente que os grandes temas são os mesmos: a morte, o tempo, o sentido da vida, o absurdo, o caos, a ordem, o amor. Enfim, todos esses temas são eternos, mas a maneira como se pega neles e as personagens que vão encontrar, as situações concretas destas personagens, tudo isso é muito fruto da própria evolução histórica. A literatura, portanto, tem essa enorme vantagem, a de estar relacionada com a realidade.

Acha, então, que vai chegar o dia em que o poeta deixa de escrever? Ou é-se poeta até ao fim?

Se quer que lhe diga honestamente… Não sei. Não consigo dizer, porque eu tenho, como já lhe contei, ciclos, períodos, não são muito alargados, mas as vezes duram meses, em que eu escrevo pouco – poesia – e depois às vezes escrevo por surtos. Portanto, é possível que eu daqui a uns tempos ainda escreva. Ultimamente, por exemplo, o ano passado e este ano, eu tenho escrito muito. Mas sinto quando esses surtos vêm e depois também sinto, pouco a pouco, quando se começam a esgotar. E não vale a pena forçar. Nestas coisas é um erro brutal forçar a escrita. Não tenho nada aquele propósito de dizer: “agora eu vou parar de escrever”. Isso não, mas, como também não vou forçar nada… nunca se sabe.

Não quer ser como alguns escritores, que se forçam a escrever diariamente centenas de palavras?

Eu só escrevi um romance, até agora. E escrevi muitos contos. Se eu estiver a meio de uma narrativa, curta, como um conto ou uma pequena novela, ou quando estava no meio do romance, aí sim, essa rotina de escritores como o Hemingway faz todo o sentido para mim. Eu estava completamente obcecado. Eu fico sempre obcecado pelas coisas, portanto, para um escritor, como eu, que esteja a meio de um romance, é-lhe muito difícil não o continuar. É difícil não estar tão mergulhado nisso que não escreva todos os dias alguma coisa.

Escrevia mesmo muito, portanto.

Quando estava na fase mais produtiva do romance não media as palavras, escrevia duzentas ou quinhentas ou mil. Quase não dormia, escrevia muito. O problema aí é sempre criar aquela velocidade de cruzeiro, criar aquele ambiente dentro da minha cabeça que seja capaz de estar de tal maneira embutido, embebido no romance que depois aquilo já possa fluir na tal velocidade de cruzeiro. Como quando nós vamos numa longa viagem, por exemplo, de automóvel, e vamos a conduzir e parece que o automóvel já se conduz sozinho. Isso é que é fantástico! Conseguir essa espécie de condução e um misto de piloto automático ainda com algum controlo da nossa cabeça e do nosso coração mas muito também piloto automático, isso é bom sinal. O que demora muitas vezes é a aquecer os motores para isso, isso é que é muito difícil.

Em termos de processo criativo, o que é que o inspira? O que é que o leva a pegar na caneta?

Um pouco de tudo. Sempre aspectos humanos, não sou muito um autor que pegue só, por exemplo, em coisas da natureza. Por enquanto não tenho pegado, mas não quer dizer que não venha a pegar. Mas normalmente são sempre aspectos muito ligados ao ser humano, às emoções e situações da vida que depois já não são vida, passam a ser obviamente um texto literário. Muitas vezes nem são situações que eu tenha experienciado eu próprio, mas são situações que eu acabei por retirar de filmes ou de livros ou de amigos ou de histórias de vida. Mas aquilo que me inspira tem sempre alguma coisa de pulsação da vida. A Arte Poética do Vitorino Nemésio, que foi um grande poeta português de que eu gosto muito, diz: “Poesia e abstracto, não.” Portanto eu não gosto muito da abstracção, de poemas que sejam muito abstractos, muito descarnados, que não permitam que haja ali qualquer pulsação ou alguma coisa, alguma dose de vida.

E se houver alguma dose de morte?

Mesmo que os poemas sejam muito sobre a morte e a partir da morte e da experiência da morte, esta é também uma experiência de vida. Todos aqueles que reflectem sobre a morte, aqueles que sentem a morte dentro de si, mesmo esses são sempre vivos, porque a morte não tem discurso, a morte é o silêncio. E eu, por exemplo, tenho fases em que ando muito obcecado com a morte. Muito, mesmo.

Thoreau disse que é vão sentarmo-nos a escrever sem nos levantarmos para viver. Mas estava a pensar que estava a dizer que não precisamos de viver tudo.

Exactamente. Eu gosto muito dessa frase. Claro, claro, as coisas misturam-se muito. Essa frase do Thoreau é muito na linha de uma frase de um provérbio clássico do latim: primum vivere, deinde scribere, que quer dizer “primeiro viver, depois escrever”. Portanto, esta ideia de facto é que está na linha da frase do Thoreau, quer dizer, o viver para a escrita, considerando que a escrita é o fundamental e abdicando da vida… eu não seria capaz. Eu acho que a vida é fundamental, e sem vivermos nós nem teríamos, julgo eu, o próprio direito à escrita. É quase uma questão de direito.

Li, recentemente, Paliativos. Nota-se a presença muito forte de coisas eternas, no livro: o amor, o tempo, a morte… Há um fascínio por estes temas, não há? Falava de obsessão…

Há, há! A resposta é sim. Decididamente. Agora, nesse livro, o meu fascínio vem mais ao de cima. Aquilo tem três partes: há uma parte, a segunda, que se chama Requiem, que são os poemas à memória de uma pessoa que desapareceu, que morreu, que foi para mim importante numa certa fase da minha vida. Requiem, percebe. Mas mesmo nos paliativospoemas das outras partes, esse interesse, esse fascínio, vem ao de cima. Na primeira parte, que tem o título “Outrora Agora”, que é inspirada em Pessoa, tem o sentido de que há um Outrora em nós que está sempre aqui connosco, que é também sempre um Agora, e que nós trazemos sempre como um lastro de qualquer coisa que parece que podemos recordar mas já não recordamos porque no fundo já não existe… Quer dizer, há ali uma mistura entre passado e presente que eu julgo que nesse livro vem ao de cima. Mas, agora esquecendo o livro, vem sempre ao de cima!

Sempre que se escreve?

Nós em cada momento que vivemos e que supomos ser o presente, como agora quando eu lhe estou a dar aqui esta entrevista, eu tenho atrás de mim todo esse lastro de memórias, de presenças, de ausências. E isto é que é muito fértil na escrita, porque a escrita é sempre uma retrospectiva de alguma coisa. Estamos sempre a olhar para trás, mas não podemos ficar só nesse atrás. É um atrás que no fundo também é agora, porque se nós não olharmos à luz do agora, ele já lá não está. Ele só lá está porque nós temos o olhar actual sobre ele. Tudo isto, tudo isto é que é fascinante.

Paliativos é um livro inquieto. Como o poeta? Saramago disse que vivia desassossegado e escrevia para desassossegar.

Essa frase do Saramago, não me lembrava dela, não tinha noção de que ele tivesse dito isso. Mas concordo. Eu podia subscrever isso. Isto é, julgo que o viver desassossegado e usar a escrita, ou olhar a escrita, como uma forma de ultrapassar de algum modo esse desassossego, para mim faz algum sentido, sim. Porque há momentos em que essa inquietação, ou esse desassossego, é tanto que nós precisamos de alguma coisa para ultrapassar essa inquietação, esse estado, que, aliás, para mim não é agradável. É estranho, é tenso, é forte, mas não é agradável. E a escrita não é, também, propriamente muito agradável para mim, nessas alturas. Mas preciso dela e é uma forma também de sublimação. Não é que a escrita me apazigue, não é um apaziguamento, mas eu sinto que pode libertar tensões, inquietações, como disse, esse desassossego que está em nós. Se eu vivesse completamente apaziguado, sem qualquer tensão existencial nem emocional, escrevia menos… Naquelas fases em que estou muito sereno e muito bem, provavelmente é quando eu escrevo menos, sim.

Então a escrita é algo libertador ou uma prisão?

Que liberta e prende… eu não lhe sei responder. Digo-lhe as duas coisas: sim, para as duas. Nos momentos em que escrevo, vivo as duas coisas. Por um lado, há uma catarse, uma libertação de alguma coisa que está cá dentro e que quer vir, quer exprimir-se, mas, por outro lado, também há ali uma cadeia, um elo, uma prisão, uma grilheta quase. E, de facto, aquelas palavras, andamos ali à volta delas, também nos prendem. Eu não defendo aquela ideia de que estamos completamente libertos na escrita. Eu julgo que a escrita é que nos condiciona a nós e, portanto, quando falei no tal piloto automático… É um bocadinho isso, e eu espero muito o momento em que as palavras venham ter comigo e são elas que me conduzem, de certo modo. E isso é uma forma de prisão. Eu sou apenas o intermediário, um ventríloquo, um porta-voz, um veículo. Há uma relação de co-dependência, isto é, eu naquele momento dependo das palavras, sem as palavras não sou nada, mas as palavras também dependem de mim.

Escreveu coisas variadas. Por exemplo, até se dedicou aos livros infantis.

Escrevi alguns, sim. Mas meus livros para crianças são uma parte muito lateral do que eu faço, não é, digamos, aquilo que mais me ocupa, de facto.

Leva-me a pensar que parece que existem, dentro de si, vários Fernandos. Como no Pessoa.

Tenho pelo menos dois. Provavelmente até terei mais que ainda ignoro, não sei. Tenho um Eu que é muito mais controlado, muito mais virado para os outros, no sentido social, no sentido funcional. E depois tenho alguma coisa em mim que é também Eu de algum modo, mas nem é bem um Eu, enfim, são elementos de um Eu, que está cá e que é um outro. E eu também preciso de esse outro Eu quase como um reservatório de qualquer coisa de infantil. É um Eu muito mal resolvido, cheio de impulsos, cheio de pulsões, cheio de desejos, cheio de sonhos. Por isso é que eu digo que é mais infantil. E tento não o asfixiar completamente, mas às vezes é difícil encontrá-lo, ele às vezes desaparece e depois aparece quando eu menos espero. Não vale a pena ir muito à procura dele, que ele foge. Mas depois volta, de vez em quando, e portanto ele está cá, eu sei que ele está cá e então tenho esses dois, pelo menos.

E na escrita, qual deles é que se revela mais? Ou há uma mistura?

Depende. Há uma mistura, mas na escrita, no processo mesmo da escrita, sobretudo na poesia, muitas vezes é este outro, este segundo Eu de que eu falei, que está a tentar aparecer, sim. Depois há sempre uma vigilância, há sempre um controlo e aí é o tal Eu mais controlado, que realmente toma as rédeas das coisas. O David Mourão-Ferreira, que foi um poeta de quem eu gostei muito e foi o meu professor aqui na Faculdade, tinha um mandamento para escrever, que era: “escrever sempre em estado de sonho, e depois reescrever sempre em estado de vigília”. Assim, quando escrevo, sobretudo poesia, deixo as coisas seguirem, fluírem, não estou muito preocupado com coisa nenhuma, é escrever e pronto. Mas depois há o processo de olhar para ali como se já fosse outro e aí, de facto, com um outro olhar, mais crítico, mais rigoroso, já está presente esse Eu mais controlado. Mas temos que deixar sair também essa outra Coisa, quase prefiro falar em Coisa do que em Eu. É algo quase inconsciente.

“O poeta é um fingidor”?

Eu julgo que sim. Quer dizer, para mim não é um fingidor, não é um mistificador no sentido de que está a querer enganar ou iludir as pessoas; não é isso. É fingidor porque é um ficcionador, é um inventor. Pode partir da realidade, pode partir da memória, da vivência concreta, mas quando está a escrever já tem uma dose de fantasia e de imaginação que faz parte da própria criação, portanto acaba por ser sempre isso. Eu acho, em relação a Pessoa e a mim próprio, que quando se escreve uma das grandes questões é nós sairmos de nós. E, portanto, por não ser fácil, pelo menos para mim, fico obcecado em fazê-lo. Se estiver a escrever qualquer texto, poesia por exemplo, mas ficção ainda mais, não quero ser eu a estar ali, quero já ser um outro. Isto é fundamental. Sair de mim próprio no sentido em que há qualquer coisa dentro de mim que me faz sufocar, asfixiar.

E assim precisa de deixar de ser o Fernando, para ser um outro? Também um pouco como o Pessoa…

Sim. Sinto que preciso de criar outras pessoas dentro de mim, para poder sair de mim. Um bocadinho como fazem os actores. Ser actor é fantástico por isso: durante aquele tempo em que estão a viver uma personagem, libertam-se, porque já são outra pessoa. E quem escreve também no fundo faz isso, porque já está a viver através de outras vidas, de outras pessoas. Quando nós temos às vezes coisas dentro de nós, e conflitos interiores por resolver… faz falta. Sabe, muitas vezes os leitores actuais pensam que foi o Pessoa que criou isto, esta questão toda à volta do Eu. E não foi, quer dizer, nós temos na nossa poesia o Sá de Miranda, o Bernardim Ribeiro… O Sá de Miranda e o Bernardim Ribeiro têm vários poemas em que dizem: o maior inimigo de mim mesmo sou eu próprio, eu criei um inimigo dentro de mim, não consigo viver, não sei viver em mim nem fora de mim, quer dizer, não consigo viver comigo próprio. Esta questão do Eu dividido e de um Eu incómodo, está lá no Sá de Miranda e está no Bernardim Ribeiro. E está em mim.

E, para além de Pessoa, também no Sá Carneiro, por exemplo.

Sim, no Sá Carneiro também, mas esse é um contemporâneo do Pessoa. Estou a referir pessoas, autores, que viveram há 400 anos, portanto isto é um problema do ser humano mesmo.Não só da contemporaneidade, mas mesmo do ser humano.

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