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Manteiguiz: as manteigas de amendoim que mudam vidas

Beatriz criou um produto que alia a criatividade e a simplicidade, o negócio e a solidariedade e, ainda, o sabor, a alimentação saudável e a sustentabilidade. Manteiguiz é o nome da marca de manteigas de amendoim que há muito deixaram de ter apenas este sabor. Beatriz Tomé encontrou uma forma única de renovar um produto que já era conhecido por todos. A ESCS Magazine foi conhecer o projeto que nasceu de uma curiosidade e que se mantém até hoje graças a uma grande dose de criatividade.

Beatriz Tomé, fundadora da Manteiguiz (Marta Laranjeira/ ESCS MAGAZINE)

Um início difícil

Neta de padeiros e de agricultores, Beatriz sempre viveu rodeada de terra e de farinha. As suas brincadeiras preferidas eram aquelas que envolviam tachos. Com a idade a vontade de estar na cozinha só veio a aumentar. “A cozinha é uma coisa que me fascina desde miúda”, afirma Beatriz com um sorriso rasgado no rosto. Optou por seguir o curso de História na faculdade, mas a vida encarregou-se de a conduzir de volta à sua antiga paixão. Cansada de comer sempre a mesma coisa, Beatriz resolveu procurar uma nova receita: a de manteiga de amendoim. Utilizando o Youtube como professor, aprendeu a fazer manteiga para consumo próprio. Ora, como tudo o que é comum a aborrece, a fundadora da Manteiguiz decidiu alterar a receita tradicional, tornando-a mais interessante e adicionando-lhe outros ingredientes. Foi assim que nasceu o conceito da Manteiguiz. O negócio só veio depois.

A tia de Beatriz, que também é artesã, foi quem percebeu o potencial do produto e a convenceu a levar os seus frascos até à feira medieval. A venda não correu bem à primeira – em dois dias, Beatriz apenas conseguiu vender um frasco. No entanto, o tempo não foi, de todo, desperdiçado. Durante a feira, nasceu a página de Instagram da Manteiguiz –  local onde Beatriz anuncia os novos produtos e partilha as combinações exóticas que faz com as manteigas. Deparamo-nos, por exemplo, com receitas como creme de legumes com manteiga de sementes de abóbora. “A criatividade que eu tenho transporto-a para a cozinha e, na realidade, para tudo o que eu faço. Está tudo tão banalizado que acaba por ser sempre a mesma coisa. Eu tento autodesafiar-me todos os dias a fazer coisas diferentes”, esclarece a fundadora da Manteiguiz.

Creme de legumes com cabacinha (foto retirada do Facebook da Manteiguiz)

Beatriz Tomé veio demonstrar que a manteiga não é só para pôr no pão. Na verdade, temos imensas alternativas: podemos colocá-la em saladas, sopas, panquecas, bolos…em basicamente tudo. A fundadora da marca é movida pela grande dose de criatividade que coloca em cada frasco e tem sugestões para qualquer um dos sabores.

Atualmente, o negócio já corre melhor. A Manteiguiz já adquiriu muitos fãs, em grande parte, devido ao esforço da fundadora para promover a marca – tanto nos meios de comunicação como nas redes sociais. Beatriz reconhece que, ao contrário da sua tia, soube tirar proveito das vantagens das plataformas digitais. “Acho que às vezes é um bocado ingrato para ela, porque está há muitos anos nisto e o trabalho dela é pouco reconhecido no país, mesmo fazendo ela coisas tão boas”, explica Beatriz. Na verdade, o que falta à tia é a capacidade de gerir uma rede social, sublinha a fundadora da Manteiguiz, “se eu tivesse uma lojinha no sítio onde ela tem, não teria metade do proveito que estou a ter agora. As redes sociais hoje em dia são uma bomba, o espaço é muito curto entre lançares uma coisa e ela se tornar famosa. Basta chegar às pessoas certas ou que escrevas da melhor maneira.”

Da semente ao frasco

O sucesso da Manteiguiz não advém só da boa publicidade. Beatriz Tomé conseguiu criar um produto natural, saudável, sustentável e saboroso. Os frutos são cultivados nos terrenos “emprestados” dos avós, descascados à mão e triturados em casa. As cinzas das cascas são depois utilizadas para fertilizar o terreno onde cultiva os produtos.

A história que começou de uma forma “pura” – nome da primeira manteiga criada pela Beatriz, 100% amendoim – evoluiu e tomou outras 26 formas. Desde manteiga de avelã com Kinder Bueno a amêndoa com coco –  são muitas as criações disponíveis na Manteiguiz. Os preços variam entre os 2 e os 5,75 euros para os frascos mais pequenos (40ml), mas há mais dois tamanhos disponíveis, um de 250 ml e outro de 370g.

Mais do que um negócio, Beatriz vê a Manteiguiz como um projeto de vida. É por essa razão que dá tanto de si à marca. Durante muito tempo, Beatriz escreveu pequenos bilhetes para cada um dos clientes, que facilmente se tornavam seus amigos. “Nós temos de fazer aquilo que também gostaríamos que fizessem connosco. Há pessoas com quem eu me identifico logo assim que elas me mandam mensagem, e, por isso, mando-lhes um beijinho grande, ou digo “espero que esteja tudo bem consigo”. Tento sempre tocar no lado mais pessoal, tentar criar uma ligação mais estreita para que as pessoas também percebam que a pessoa que está do outro lado não é só uma vendedora de manteigas, mas também uma pessoa com quem podem criar um laço bonito, como até já aconteceu.”, conta fundadora da Manteiguiz. Beatriz desfaz-se num sorriso rasgado quando lhe perguntamos sobre o futuro. Não gosta de fazer grandes planos, mas há pelo menos um sonho que ainda falta concretizar. Admite que gostava de ter uma loja no centro de Lisboa, apesar de se achar uma péssima vendedora. A vontade de ter a sua própria loja vem do desejo de conhecer cada um dos seus clientes e ficar à conversa com todos eles, mesmo que no fim não levem nada. Para já, o futuro mais próximo reserva-lhe uma parceria com uma loja de brigadeiros no Chiado. “Quero ver a Manteiguiz crescer, até porque a Manteiguiz sou eu e eu quero evoluir. Ficar parada é que nem pensar. Há imensos projetos que nascem assim do nada e de repente tornam-se enormes. Eu sou historiadora e estou aqui.”, assegura Beatriz.

Frascos de 40 ml da Manteiguiz (Marta Laranjeira/ ESCS MAGAZINE)

Atualmente, o volume de encomendas já não permite que Beatriz envie uma mensagem personalizada a cada um dos seus clientes, por isso, opta agora por enviar um pequeno íman como recordação. Beatriz é a primeira a admitir que qualquer um pode fazer manteiga de amendoim em casa, mas é o lado mais humano e criativo que dá ao projeto   que faz toda a diferença. “Eu vi como fazer manteiga de amendoim no youtube, por isso, toda a gente pode fazer manteiga em casa. Basta ter uma trituradora em casa. Mas acho que é a criatividade que coloquei no projeto, as fotos que tiro que fazem a diferença. Tem a ver até com a minha própria personalidade e com a relação que criei com as pessoas. A coisa mais simples do mundo pode continuar a fazer sucesso se for transformada e inventada por outras pessoas, depende sempre da forma como se agarra nas coisas e na forma como se olha para elas”, reconhece Beatriz.

O outro lado do projeto

Beatriz tem um sorriso que contagia quem está à sua volta. Não perde a positividade que a caracteriza, nem mesmo nas situações mais difíceis. Ora, a prova disso mesmo tem um nome: Carolina.

Foi numa das suas viagens de comboio que Beatriz se cruzou com a história de Carolina Gil – uma jovem bailarina a quem foi diagnosticado cancro no cérebro, pulmões e ossos, aos 25 anos. Beatriz não conseguiu ficar indiferente à história e procurou saber mais. Carolina estava a precisar de ajuda para conseguir pagar os tratamentos de que necessitava. Beatriz confessa que não precisou de pensar muito antes de decidir ajudá-la, “assim que lhe enviei a mensagem ela respondeu. Disse-lhe que a ia ajudar e perguntei-lhe como poderia fazê-lo. Ela mandou-me o NIB e explicou que podia fazer uma doação. Eu fiz a doação, sim senhora, mas queria ajudar mais. Não consegui ficar indiferente àquilo. Então decidi que metade do valor das minhas vendas com a Manteiguiz durante um mês revertiam para auxiliar a Carolina.” O mês terminou, mas as doações continuaram. Beatriz, sem sequer ter estado com a Carolina pessoalmente, continuou a ajudá-la durante meses.

No entanto, não era a primeira vez que a Manteiguiz se tornava uma marca solidária. Beatriz já tinha, outrora,  ajudado uma família que estava com dificuldades financeiras, angariando comida e bens essenciais. Mas com Carolina foi mais longe. No passado mês de novembro, a fundadora da Manteiguiz organizou um espetáculo solidário com a colaboração da Sociedade Filarmónica Recreio de Alverca. Ao recordar agora o evento, Beatriz conta que continua a estranhar como é que conseguiu juntar tanta gente em volta de uma causa. “Ainda hoje é difícil para mim acreditar que aquilo aconteceu. O balanço que eu faço é espetacular, conseguimos ajudar a Carolina mais do que eu esperava. A dois dias do espetáculo tínhamos 150 lugares preenchidos, num auditório de 400. No dia do espetáculo houve uma enchente de pessoas a comprar bilhete. Eu não sei de onde é que veio toda aquela gente”, descreve a fundadora da Manteiguiz. Não foram poucos os esforços que fez para que o espetáculo se realizasse, “pedi a imensa gente através das redes sociais para que me ajudassem a divulgar”, explica Beatriz, “é incrível o poder que uma partilha pode ter. As pessoas não têm noção do poder de influência que podem ter nas vidas das pessoas através das redes sociais.”


Cartaz do evento solidário organizado pela Manteiguiz (Foto retirada do Facebook da Manteiguiz)

Beatriz e Carolina tornaram-se grandes amigas mesmo não estando presentes na vida quotidiana uma da outra. Ainda assim, do pouco tempo que Beatriz esteve na presença de Carolina conseguiu retirar uma grande lição: “Eu vivo muito para os outros, sempre fui assim. Em certas alturas da minha vida cruzei me com pessoas que não souberam valorizar isso e “abusaram” da minha bondade. Mas, a partir do momento em que conheci a Carolina, percebi que às vezes nós só estamos rodeados das pessoas erradas. E quando nos rodeamos das pessoas certas começamos a perceber que aquilo que antes achávamos que era um defeito é, na verdade, uma grande qualidade nossa. Acho que a maior lição que eu tiro de tudo isto é que nunca devemos desacreditar nas pessoas e devemos sempre estender a nossa mão. Isto parece uma frase cliché do Facebook, mas é mesmo assim.”

A doença roubou o movimento e a independência de Carolina, mas nunca lhe retirou o sorriso. “O corpo da Carolina está a decair, mas eu sei que o tempo que ela por aqui andar, pelo menos metade desse tempo foi passado feliz, porque conseguiu ver a tempo a bondade e a força do ser humano”, confessou Beatriz.

A jovem bailarina, Carolina Gil, morreu no dia 30 de dezembro de 2019. Beatriz despediu-se em forma de poema:

Eras bailarina de corda
Que acordou o amor que vive em nós
Connosco fica a corda que nos amarrou

E o fio frágil que seguravas no dedo
Prendia o teu balão de coragem
Que se transformou ontem na nuvem onde vais morar

Dança, bailarina de corda
Que a corda que te prende à vida nunca se soltará
Aqui em baixo ficamos nós, presos à vida que querias viver
Honraremos os dias que não viverás daqui por diante

Sê ballet, samba, valsa e tango
Sê nuvem de algodão doce
Chuva de inverno
Brisa leve de fim de tarde
Sol quente de verão

Dança no sol,
Dorme na lua,
A vida que tens dentro de ti é tua e nunca morrerá
Até que se dance a última dança, estarás viva

A morte saiu à rua para nos fazer chorar a água que cai do céu
Essa água que não tiveste medo de beber
Dançar à chuva não é para todos,
É para a Carolina Coragem.

Da tua Bi, para sempre.

Artigo revisto por Bruna Gonçalves